sexta-feira, 25 de maio de 2012

Vem você também vencer

   
            

              Atenção POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA; há várias demonstrações de que MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS 
==============



DENUNCIE O FASCISMO  BRASILEIRO que está ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO


  

Este blog colabora com campanhas de recuperação das garantias civis contra o descalabro da dominação info-midiática


  Vem você também vencer
  
                                   :  romance de juventude

                           Eliane Colchete

                                                                                                
                                                                                                      (   Escrito em: maio a julho 2002. )

   1 )

          
                                                                                                                                              ... 

               A irmã estava sentada. Ali. Márcia sentia isso sempre, a presença dela, quando chegava, quando estava. Era algo ao mesmo tempo natural, porque costumeiro, eterno, nunca tendo sido de outro modo, e no entanto estranho, oblíquo, ela estava ali. Então havia aquela sensação de partilha. A qualquer momento uma palavra sarcástica, mordaz ou apenas um pouco zombeteira e por vezes, mais raramente, uma observação justa, concisa, que levava a reconsiderar as coisas sob certos aspectos.
               Mas tudo na sala agora estava calmo, pousado na noite, cambiante como as luzes coloridas da televisão, fresco como a brisa penetrando pelas janelas amplas. As cortinas brancas, rendadas, afastadas para os lados, não eram tocadas pelo vento, não se moviam. Testemunhavam as cenas vívidas, talvez, como as próprias moças. Xana, a irmã, devorava pipocas. Com um jeito felino abandonava-se no sofá, a pele muito branca, os cabelos curtos, encaracolados, cheios, muito finos, de um loiro ruivo faiscante. Márcia, morena, mais nova, algo contida em si mesma e ainda mais toda vez que a irmã estava perto, procurava relaxar em sua poltrona, olhando atenta a tv.
           Na tela uma pianista demonstrava seu virtuosismo em meio a tomadas de câmeras em close, ressaltando a sua fisionomia concentrada ou apenas o movimento destro das mãos deslizando profissionalmente no teclado. O prazer que Márcia sentiu ao ver aquelas imagens, ouvir a música tão bem executada, misturou-se a uma sensação de expectativa. E com efeito, logo veio o comentário da irmã:

_ Ah! Ah! Olha lá a Márcia!

            Seus risos, precedidos por um olhar provocativo tão exagerado que obrigou Márcia a fitá-la, a frase que se seguiu, nada obrigava uma resposta. Mas o efeito, sempre o mesmo nestas ocasiões em que Xana a aborrecia com a zombaria quanto a seus planos, foi o de erguer uma barreira entre ela e a visão que até que a irmã se manifestasse havia sido inteiramente sua.
           Agora a cena da tv estava ali, continuava ali, decerto, era a mesma coisa mas também era outra coisa. Algo, só, como frutas de cera, incomestíveis, inapreciáveis, coisas inertes, meras aparências,nada, cansativo e fútil.
   
                                                                                                                     ...

          Longe. Apartados. A noite pura, sem sombras porque somente a noite, o nada dos campos se estendendo horizontalmente, sem fim. Ana contemplava a extensão solitária, sentada por um instante nos degraus da varanda tendo ainda a porta fronteira da casa aberta pois havia estado agora mesmo na sala, fumando seu cigarro, apenas o abajour aceso, esperando... esperando...
         Que a noite passasse. Que o dia passasse. Que a outra noite, que o outro dia passassem.
         E então a vida voltaria ao normal. Retornariam. Ela, o pai, a mãe, o irmão caçula, ao apartamento no bairro urbano, para mais uma semana e depois outra semana. Mas o que a exasperava era que no outro período quinzenal estariam aqui novamente. Novamente e sempre. Desde que o avô morrera, o pai havia cismado com aquilo, com prosseguir a vida do avô.
          Mesmo a sós, agora na madrugada sentada no alpendre, amargurada com a contingência sem sentido ela fez um muchoco, uma careta, como se alguém, uma amiga, um colega, estivesse ali com ela partilhando seus pensamentos, suas dúvidas, seus medos, seu tédio, seu desprezo – sim, desprezo pelo pai, pois, 0 quê?! Havia ele agora de se metamorfosear em caponês cuidoso de seus amanhos e pousios, ele, um arquiteto folgazão, totalmente imerso na vida da cidade, ele, que não sabia cuidar – de nada?
         E depois, aquelas viagens. Horas no carro, toda sexta-feira, quinzenalmente, apenas para “ver se está tudo certo”, para “tomar pé da situação”, para “ir se preparando, pois um dia tudo isto será seu.” Mas ela não queria – não queria – nada – nada- não queria nada daquilo !
         Ela queria ser estilista. Desenhar moda, organizar desfiles em uma griffe própria. Havia querido ser modelo. Suspirava agora, sentada no degrau fresco de ladrilhos, sendo quase que inadvertidamente acalmada pela doçura do vento, pela calma da noite. Abandonando-se às recordações, deixava-se levar aos tempos em que havia tanto desejado aquilo, ser modelo, desfilar...
         À noite em seu quarto costumava projetar antes de dormir as cenas em que aparecia realizando os seus sonhos. Deslizando na passarela imensa... Fazendo poses clássicas, irrepreensíveis, seu rosto por um momento imobilizando-se em uma expressão devastadora, excitante, misteriosa, irresistível, tudo isso captado sem falha por um sem número de fotógrafos ávidos, eles mesmos admirados com seu talento de modelo... Olhando para o alto contemplou agora a estonteante variedade de estrelas que brilhavam, incontáveis, no fundo escuro da noite onipotente.
         Logo voltou ao presente, olhando então para a frente, não tanto irritada, seus sentidos lavados na pureza das coisas, da vastidão ao redor, mas assim desanimada, entregue ao gosto frustrante do que ela sabia ter vindo depois. Suas formas, a partir dos quatorze anos, não se alongaram como ela havia querido e esperado mas, desenvolvidas e juvenis é certo, continuavam inapelavelmente arredondadas. Ela era “quase” gorda – “cheinha”, contemporizavam as amigas – enquanto que os cabelos, por mais que gastasse em cremes permaneciam algo-crespos, cortados acima dos ombros, formando uma aba ao redor do rosto. Escuros, contrastavam bastante agradavelmente com seus olhos esverdeados, belos. Um pouco da autoconfiança voltava toda vez que lembrava esse detalhe. Fosse como fosse, seus olhos eram belos, formando um conjunto facial harmonioso realçado pela flor da juventude.
          Mas o tempo ia passando e ela constatava que ser modelo não era – não seria- o caso. Certo dia, voltando da escola, as férias próximas, no ano seguinte devendo começar a cursar o segundo grau, ela simplesmente constatou isso, andando sozinha pela rua doméstica, ensolarada, no trajeto diário entre a casa e a escola e vice-versa, os cadernos pesando na bolsa – não, não seria nunca uma modelo.
          Lembrava bem daquele dia. Havia caminhado desde a escola com Maria Rita, conversando as duas com total irreverência e familiaridade, então havia deixado Maria Rita em casa e prosseguira, andando, e de repente algo nela ficou tão silencioso, vazio e leve, como se nada houvesse dentro dela, nem no mundo, nem em lugar algum, um nada que não se reconhecia como tal porque ela não se dava conta, estava só andando, andando com uma consciência aguda da cor da tarde, da conjunção das formas das casas, das nuances das coisas, da maciez do ar, então inspirou e soube – soube que era preciso desistir agora, não ser modelo para si mesma como não o seria para os outros.
          Assim chegou em casa com aquilo, procurando aceitar serenamente a verdade que tão serenamente lhe viera e se impusera, que agora ela retinha com cuidado, como a algo valioso mas pesado, difícil de saber como tratar assim, de imediato. Mas já depois do banho ela novamente sabia, tudo bem, tinha que trocar de sonho, então ela poderia desenhar moda, comandar ela mesma o espetáculo, se envolver com a coisa na medida do seu possível – e também nada era para agora, havia todo um segundo grau para fazer e só então chegaria a hora de se definir profissionalmente.
          Olhou ao redor, voltando a atenção para o absurdo do seu presente. Sentada na varanda, no meio da noite, olhando as próprias mãos na fazendola do falecido avô, a milhas e milhas de distância do seu próprio mundo, naquela pairagem doida - que é que deu no pai para encasquetar com aquilo de ser que nem o avô?!
          Mas tudo bem ele querer ser o que ele quisesse, ainda que ela achasse aquilo ridículo. Mas ele havia escolhido aquilo para ela! Ele estava a toda hora dizendo “Ana, você tem que tomar gosto pela coisa” ou “Ana, você tem que aprender o seu ofício porque isso aqui vai ser seu”, ele queria que ela fizesse daquela empresa de laticínios – que havia sido a vida do avô- o seu métier, a sua profissão: “Minha filha, uma empresária de sucesso”!!!
           Ana olhou novamente para o céu. Uma estrela riscou a escuridão. Por um instante ficou alegre frente à auspiciosa aparição. Mas logo o ímpeto da noite a invadiu. E se aquilo fosse uma confirmação dos seus pensamentos simultâneos à aparição? Seria inescapável? Teria que trocar o sonho mais uma vez? Mas agora aquilo não era bem trocar, nem desistir, era simplesmente ter que aceitar algo totalmente imposto – e por quê? Porque deveria obedecer?
          Certo, suas formas também lhe haviam sido impostas – mas não parecia ser a mesma coisa. Sentia que o pai não deveria ter o direito de determinar-lhe as escolhas. No entanto o cansaço chegava naquele momento fazendo-a renunciar a tudo – à noite, às decisões e ponderações – ela entrou na casa, dirigindo-se ao quarto. Despiu-se quase com indiferença atendendo ao convite de sua cama ampla e bem arrumada que em meio à penumbra esperava...esperava...

                                                                                                                           ...

          Olhando o rosto dele. Perscrutando-lhe os sinais. Marlene se sentia tão só ali – ao lado.

_ Cansado?

               Ele olhou um pouco mas apenas para negar. Não, porque deveria? Sim, estavam caminhando há horas com o capataz. Não era o capataz, essa palavra só existia no vocabulário dela. Era o administrador. Marlene queria abraçá-lo. Porque abraçá-lo agora? Mas era preciso andar. Andar no sol em meio aos currais, depois tomar o carro e chegar à frente, à casa de curar, inspecionar prateleiras, formas, substâncias e então tomar novamente o carro após haver experimentado o doce de leite. Os rostos impassíveis de alguns trabalhadores que ainda estavam ali mesmo sendo domingo, suas máscaras. Marlene em seu vestido verde, a senhora. O marido adiantava-se procurando estar ao lado de Ana. Marlene ouvia trechos da conversa entre o marido, a filha e o capataz – administrador.

_ Pai, estou exausta!

          A mãe chegou a sorrir levemente. Sabia que Ana iria explodir a qualquer momento.
          Mais tarde, o almoço. Aceitar a presença do capataz (administrador). Falavam agora na “Expansão”.

_ Claro, Ana, que o seu avô, você sabe, deixou tudo muito bem organizado, mas assim, conforme o jeito lá do tempo dele. Temos que modernizar, automatizar. Ampliar também, mas isso mais em um sentido qualitativo do que propriamente in extenso...

          O empregado observava. Quitério, chamava-se. Calado, respeitosamente absorvendo o sentido do seu prato na mesa do patrão. Se o marido arquiteto divertia-se com formalizar conceitos para situações concretas, se para o homem inculto era impossível acompanhar-lhe os meandros, a coisa toda lhe parecia muito certa. O patrão não era o ex-patrão. As coisas haveriam portanto de mudar. Olhava às vezes, de soslaio, para Ana. Só não entendia o que ela estava fazendo ali.


                                                                                                                           ...

                Domingo. Márcia saiu do banho. Suas roupas caseiras, o frescor da água. A irmã estava em algum lugar, com amigos. O irmão, idem. Ela pensava na vida. Mas tinha que se exercitar.
               Chegou-se ao piano. Desde sua infância, o piano. Todos na família sabiam: Márcia seria professora de piano. Menos a irmã. Sim, certamente Xana compartilhava essa certeza familiar inscrita na origem dos tempos. E a toda hora a irmã lhe vinha apontar o fato daquela inevitabilidade. Mas ela sabia que Márcia não queria o piano, que Márcia almejava ser cientista, estudar química. Por isso Xana zombava dela.
              Não é que ela não gostasse de tocar.
              Corria os dedos ágeis em meio às teclas, sentindo aquele conhecido conforto por estar executando algo que sabia bem. Não era uma virtuose, mas poderia lecionar – sim, poderia, não seria mau. No entanto a química a atraía, a ciência, avançar sobre um saber, era tão oposto a apenas dominar um movimento, deixar-se levar pelo sentido da composição... Não desejava tampouco enfrentar o mundo. Havia um lugar para ela, na banqueta do piano.
             Como agora revirar as circunstâncias, parar com isso, fazer aquilo -? Ela também sentia o piano como um ponto de apoio, uma rotina que a dignificava perante os outros e que a fazia sentir segura, ela mesma – Márcia, filha do seu Pedro e da dona Zulmira.
            Os exercícios desprendendo sons harmoniosos a embalavam em sua automação. Como de costume, Márcia mergulhou naquele universo de sons..

                                                                                                                          ...

              Precisava falar-lhe. Desviar a atenção – para ela. O empregado, após o almoço, o café, alguma conversa, fora dispensado por aquele dia. Ana e Sérgio queriam seus quartos, o telefone, o vídeo-game. O marido refugiou-se na Tv.

_ Fernando...

              Ele refez o trejeito com o olhar, em seu mudo “fale!”

_Fernando, você não está mesmo contando com a Ana para...

             Ele mostrou-se contrariado. Mas por algum motivo não cortou-lhe a palavra. Acendeu um cigarro, adotando a postura de quem ouve - a - mulher - e - vê- a- Tv.

_...Para tomar conta desse negócio?

             Agora ele sentiu a necessidade de encarar os fatos. Sua mulher o interrogava sobre o que ele não devia responder muito. Sim, sabia todas as respostas ou ao menos a marcha, o desenrolar dos acontecimentos no seu todo mas sabia também que tudo devia ser conduzido com cuidado, passo a passo.

_ Não está dando para entender esta atitude, Fernando. Você sabe que ela não...

_Sei que ela é minha filha. Sei o que é o melhor para ela.

            Fernando levantou, desligou a Tv, encaminhando-se para a varanda. Marlene não sabia se deveria ir até ele ou ficar ali na sala, muda, como se não houvesse dito nada, como se não suspeitasse...

                                                                                                                                            ...
                
            Tudo nela era rápido. Decisivamente acordada. O ritual da manhã cumprido sem uma palavra pois todos dormiam. Maria Rita sai de casa com os livros nos braços. Reluta em guardá-los em uma sacola. Não sabe porquê gosta de carregá-los assim.
           Frescor. Manhã. Ontem foi um horror. A mãe e o irmão brigando mais uma vez por causa de dinheiro. Chegando a época das provas. Ela tinha que resolver a vida. Carlos aparecera no almoço. Fechou-se com ela no quarto enquanto a mãe urrava seu “Não, nem um centavo” para o irmão. Com ela a mãe não se importava. Podia fazer o que quisesse. Não ligava.
          Carlos, até ele desta vez, sentiu o incômodo da briga. Mesmo assim forçou um pouco. Estava sempre querendo.
           O emprego dele... Ela podia vê-lo agora, imaginá-lo detrás do balcão da padaria. Pensava se as freguesas reparavam no seu olhar persuasivo, solicitando algo vago, perdido às vezes em um sonho escuro bom de ver. Quanto mais resistiria ela?
          Chegando ao Colégio Vitória. Quê que você vai ser quando crescer? – Quê que você vai pôr no formulário: profissão – X, Y, Z? Tudo bem, vou ser Designer. Vou fazer desenho industrial. E se não passar... Carlos só quer que eu vá morar com ele. Vou? Ou é desculpa só para o “Sim”da vez? Carlos... Guilherme vem ao seu encontro, no portão. É seu amigo e a espera. Por um momento ela não pensou em Carlos.
          Mas era tão pequeno o número das vezes em que não pensava... Sentia-se tão cansada...


                                                                                                                                       ...
            Márcia recebeu a estridência do sinal batendo a hora do recreio como um som denteado e áspero que a fez sobressaltar –se levemente. Os alunos se agrupavam aos pares ou magotes. Lentamente, quase sem se dar conta, sentiu que Maria Rita acompanhava-lhe os passos na familiaridade cotidiana de todas as manhãs. Márcia, algo silenciosa desta vez, sentiu-lhe porém a ansiedade. A amiga parecia ter algo a contar.
         O pátio iluminado pelo sol coalhava-se de figurinhas álacres uniformizadas e intensamente móveis. Ora postavam-se em fila na espera da merenda, ora desfilavam esparsos aqui e ali. Márcia e Maria Rita sentaram-se a um canto dos degraus de pedra que recortavam o espaço central em torno da estátua de Nossa Senhora.

_ É isso aí mesmo, Márcia. Acho que não vou resistir mais. Vou aceitar a proposta dele.

         Márcia sentiu-se confranger por ela. Ao mesmo tempo não entendia muito bem aquela escolha, não dominava a situação, de todo.

_ Acho isso uma loucura, Maria Rita. O Carlos nem mesmo está estudando!

        Ela não respondeu de imediato. Retraía-se. Então, era isso. Márcia só reparava que ele não era como “nós”. O que importava porém, os sentimentos deles, o que estava em jogo, a sua honra de moça, a sua vida... Márcia parecia que não queria saber. Ou talvez não quisesse tratar de coisas tão graves, gozando de sua companhia apenas no que havia nela de gárrulo, de gabola.
          Maria Rita olhou à volta, abarcando em sua visão a pequena multidão de alunos que desfrutava o intervalo do recreio, ao sol da manhã. Sentiu um ímpeto de revolta. Márcia era como eles. Certamente poderiam tratar de assuntos “sérios”, como as doenças da família ou as disputas em torno da hora fixada pelos pais para voltar para casa no sábado à noite. Certamente, se fosse o caso de pedir-lhe um conselho, solicitar-lhe uma palavra amiga. Mas quando ela precisava de uma opinião bem formulada, quem manteria o assunto? Ali estavam, todos eles. E no entanto não havia ninguém.
          Nenhum deles se atreveria a sair do estreito círculo limitado casa-escola. E ela, ela não estava presa no interior do círculo. Já havia visto coisas demais, era muito grande para eles.
          Repentinamente olhou Márcia e teve pena. Seria possível que Márcia crescesse, se casasse e tivesse filhos, sem nunca sair daquele círculo, vendo nas pessoas e situaçõers apenas a conformidade ou não para com os ditames do que era o costume as pessoas fazerem?

_Mas ele trabalha!

             Ela respondeu finalmente e logo se arrependeu de tê-lo feito porque de certa forma a resposta era um voltar atrás do momento em que se apercebera da distância entre o ponto de vista da amiga e a sua própria experiência das coisas. Mas Márcia era uma pessoa sincera, devotada àqueles a quem amava. Nutria afeição genuína por Maria Rita e mesmo sentindo que estava adentrando em terreno pouco seguro, um No Man’s Land inautêntico para si mesma, ainda assim pretendia desviá-la do que considerava ser um erro.

_ Certo, mas e daí? Você vai ficar a vida toda com um homem que de seu só possui um salário de balconista?

           Agora Maria Rita sentiu-se ferida. Claro, não era só a convenção que sustentava a estreiteza do círculo mas sim a grana – tudo era isso, o preconceito da grana e da aparência.

_Olha Márcia, deixa pra lá, tá?

_ Mas como assim, deixa pra lá? O que é que você vai fazer? Eu só quero que você não se arrase!

_Arrasar? – Maria Rita sorriu, algo sarcástica. _Quê isso, márcia, eu só faço o que acho certo.

            Levantou-se. Márcia acompanhou-lhe os gestos. Os alunos aglomeravam-se agora mais ou menos em direção à escada que os levaria daqui a pouco, quando o sinal tocasse, novamente às salas de aula. Todo o ritual exasperava Maria Rita. Pensava em Carlos. Ainda próxima à Márcia, mas sem conceder-lhe mais nenhuma atenção, viu Guilherme, que a interpelava. Comentava sobre a letra de uma música que ela lhe havia pedido para copiar. O título da canção era “Viagem Fantástica” – e de repente ela sentiu como se estivesse sendo içada do meio dos seus colegas, do pátio, da escola, do bairro. Estava entrando em algum tipo de estação da qual sairia, sem retorno, para uma outra vida, com Carlos. Uma vida fantástica, como uma viagem eterna...

                                                                                                                           ...

          Voltando para casa. Cansada. Os livros nos braços cruzados sobre os seios. Andando ao sol forte, tudo era luminescência. Estava com fome. Procurou no íntimo um resto de paciência e força. Queria que o pai estivesse lá, barulhento como ele era. Mas sabia que ele estava no hospital. Involuntariamente sentiu-se de novo naquela outra tarde em que voltava do curso de inglês. A varanda estava banhada em sangue. O coração apertado diante daquela visão. Correr para transpor a porta e saber o que havia ocorrido.
           O pai, bêbado, havia tentado consertar um ventilador. O aparelho explodira em lascas que voaram para todos os lados. Uma delas encravara-lhe no músculo do braço e desde então ele estava no hospital. Só mais um pouco, repetia-se. Já estamos chegando , calma, calma. Ela falava consigo mesma.
            A casa estava escura, com as cortinas cerradas. A mãe fora visitar o pai no hospital. Ivone apareceu anunciando-lhe que fizera o almoço. Maria Rita detestava Ivone.

_Cadê o Toni? – Perguntou.

_Está trabalhando.

_Ah! isso sim é novidade! – Ela replicou, ironizando. Porque Toni não parava em emprego nenhum nas raras vezes em que procurava trabalho. Ivone estava morando com ele, com Toni, seu irmão mais velho. Ivone viera de uma favela. Tudo nela era pobre, avesso à vila, ao bairro em que Maria Rita vivia com a família desde criança.

             Ela não sentia como se alimentasse um preconceito. Carlos não estudava porque tinha que trabalhar para sustentar-se e à mãe, ele que nunca conhecera um pai. Mas Ivone não era uma trabalhadora, apenas era uma favelada, era uma pessoa errada desde o princípio, isto é, errada para estar ali. Mas Toni – que estava sempre criando problemas – tinha que criar mais esse, trazer Ivone para casa, grávida, para serem todos sustentados pelos pais.
            Após o almoço, desalentada, só queria que fosse noite para receber a visita de Carlos. Fazia tanto tempo que estavam namorando... Ele costumava vir todas as noites vê-la. Aos sábados e domingos eles passeavam... Às vezes iam ao cinema na sexta à noite, aproveitando o pagamento semanal do trabalho na padaria.
             Sempre que havia possibilidade ele procurava avançar em suas defesas, tentando carícias cada vez mais ousadas, até que havia resolvido que ela deveria parar de estudar, ir morar com ele, cuidar de sua velha mãe e da casa, enquanto ele trabalhava. Ela estava para completar os dezoito anos. Ele já tinha os seus vinte e sete. Parecia-lhe muito cedo. Mas depois viriam os filhos, ele prosseguia em seus planos. E ela deveria resolver as coisas já.
           Um pouco preguiçosa, sentada à janela da sala, resolveu falar com alguém. Ligou para Desirée. Combinaram que Maria Rita iria até lá, agora, para estudarem juntas. Haveria prova amanhã e era preciso praparar-se. Ivone ligara, entrementes, o aparelho de som. Ouvia música muito alto e de qualidade duvidosa, música de favelado segundo o gosto de Maria Rita.
          Aliviada por sair, sentindo a costumeira sensação de vergonha por todas as vezes que os vizinhos ouviam aquele tipo de música, naquela altura, saindo da casa dela, Maria Rita desligou o telefone para correr à casa de Desirée.

                                                                                                                                    ...

           Ana tirou o telefone do gancho. Estava feliz por ser sua casa, sua segunda-feira, sua cidade, seu bairro – e por não ser a fazendola do avô. Queria falar com Fátima.

_Oi, Fat, como é que estão as coisas por aí?

_Ah! Ótimo, parece até que faz dez anos que a gente se viu pela última vez!

         Riram ambas, despreocupadas, pois haviam se falado ainda aquela manhã, no Colégio Vitória, e agora sentiam jorrar o gosto da tarde amena.

_Pois é, vou tentar mesmo veterinária.

         Ana expressou sua aprovação àquela escolha. Estavam no terceiro colegial. Mais alguns meses deveriam estar prestando o concurso vestibular. O quarto encerrava uma penumbra tranqüila. Mas Fátima não estava ligando nada para algo assim como uma decisão.

_ É, o que vier vai ser. – Filosofava ela. Ana reiterou sua vocação para a criação de moda. Ainda não havia comentado com ninguém sobre a esquisitice repentina do pai em mantê-la ligada ao negócio de laticínios. Provavelmente ele acabaria percebendo que aquilo era pura loucura e a deixaria seguir o próprio caminho.
             Após mais algumas palavras despediu-se de Fátima e mergulhou na leitura do livro que serviria como base da prova marcada para o dia seguinte. Por um instante lembrou-se de Márcia. A matéria da prova era química. Sorriu consigo mesma: como é que alguém podia gostar de química?


                                                                                                                                           ...
            Fátima pousou o fone e saiu do quarto. Procurava os patins na área de serviço, e para isso atravessou a sala de estar com sua mesa imensa, onde a mãe trabalhava em seus apontamentos.
           Mas e pra quê toda essa cola se o lance não sonha? Não podia se representar toda hora naquela mesma da mãe. A sala era luxuosa e tranqüila. A amplidão da janela do apartamento debruçada sobre a paisagem de bosques, especialmente projetada para ser paisagem, rodeando o condomínio. Na sala havia pelo menos três ambientes, a mesa enorme de jantar, o living, um recanto íntimo e a mãe com seus apontamentos – a professora de inglês.
            Claro que a Liége ia estar naquela da poltrona totalmente enfurnada em um volume que todos os chatos insistem em denominar essa coisa um livro. Pô, que o horizonte da virtude se achava na linha! Tava tudo no sol, no lance, isso sim.
             Liége era sua irmã, a mãe era sua mãe e ambas pareciam à imagem e semelhança da avó. Receou que a mãe lhe fosse chamar para propor que estudasse. Mas lá ia ela, na dos Patins.
              Subiu. O elevador tinha tons dourados na luz abafada. Esplendoroso o terraço se alçando por sobre a cidade e ela deslizou suave naquele encontro com a tarde avançada.
              Daí achou-se repentinamente muito grande para o mundo, ela com seus vinte e dois, você sabe... Anos! E todo o pessoal da sua sala, na escola, lá uns bem dois/três ou mais a menos, então resolveu descer porque também o mundo era como o terraço e para que patinar por ali como se fosse um bebê?
               Na rua as coisas deviam ser anônimas excetuando-se os cognoscentes que a gente sabe desde a infância nos idos do ginásio tal qual o boy Joseph, que lá vem ele por ali.
               Ela estava na sua, jangada da tarde para um lado e para outro nas calçadas exclusivas do condomínio e ele se chegou, seu velho amigo e companheiro das antigas – ela estava querendo armar uma tenda para despistar o lance do fato de que ao passar pela sala do apartamento ela de novo havia tido que se dar conta de que era a quarta de um trio do qual não fazia parte, constituindo-o porém, mãe, irmã e avó, todas trancafiadas nos livros, apontamentos, marcadores, clipes, pastas, fazendo dos estudos o centro do universo.

_E aí, Fátima?

_Legalézimo, Joseph!

            E aí ela parou os patins e se parou frente a ele com o torso ereto. O sol agora estava dando um tempo porque a tarde parecia ter esmaecido. Ele ficou ali, lhe sorrindo, o rosto romântico, com olhos sugestivos e luminosos encimados por cabelos morenos e lisos. Então foram, escorregantes, até se entrançarem, no banco do bosque. Comentavam:

_Ela é muito... assim... não se solta, ah! Sei lá, me dá um nervoso...

             Joseph falava de Márcia.

_Eu acho que ela é muito careta. – Fátima aduziu. Eles riram.

_Sabe que ela nunca...

_O quê?!

              Ele exclamou. O fato é que as outras meninas, em se comportando como Fátima logo estariam “faladas” por aí. Mas ela não.
              Vivia sua liberdade na confiança de amigos que a viam como a uma igual.

_Também daquelas inocentezinhas, quem já? – Ele contemporizou.

_A Maria Rita eu tenho quase certeza que sim. A Ana eu sei que sim.

_Bem... – Finalmente ele falou, depois de um tempo maneiristicamente gasto em apreciar a novidade do que ela lhe contava, com uma expressão de assombro no rosto másculo.

_Bem... As coisas estão assim avançadas, então... – A expressão dele era tão irônica, suas palavras tão ponderadas em contraste, que ela soltou uma gargalhada. Algum tempo depois eles se levantam e vão à casa do Jair.

              É noite. Jair tem músicas de Rock e fotos de surfistas. Mas tem também o quarto do irmão que está viajando. Fátima e Joseph se trancam por lá. No lance da amizade tudo é permitido e é assim que ela gosta, Fátima, “eu & você também”, o mundo é o corpo, ela não é uma página...

                                                                                                                                 ...
           
              
_Não, não, Carlos, espera, espera por favor...

             Excitados, os olhos escuros dele pareciam toldados por uma nuvem de desejo. Em seu quarto Maria Rita procurava conter-lhe as investidas. A mão procurando seus seios, o corpo pressionando, querendo colar-se ao seu. Ela mesma sentia às vezes imergir na voragem dos beijos, das carícias. Resistir, Maria Rita, resistir. De repente fica em pé, levantando da cama apressada. Alguém bate à porta. É Toni.

_Maria Rita abre essa porta!

          Assustada, pensando tratar-se de algo relativo ao pai, ela corre a atender ao chamado. Carlos se arruma, consertando a posição da camisa, passando a mão pelos cabelos. A mãe ainda não havia retornado do hospital. Ela estava preocupada com a hora. Nada quisera comentar com Carlos. Agora abria a porta, ansiosa.

_Olha aqui vocês dois, eu não quero agarramento aqui em casa, estão entendendo? Deixem essa porta aberta!

            Nada poderia surpreende-la, chocá-la, mais do que isso. Como então, que é que tinha o irmão a ver com a vida dela?

_Qual é, Toni? Você não é meu pai nem minha mãe. Vá se meter com a sua vida, tá legal?

         Nisto Ivone arremeteu à porta.

_Ei, isso é comigo, por acaso?

        Maria Rita emudeceu de espanto. Havia falado “com a sua vida” não “com a sua mulher”. Mas então sentiu a força da evidência. Óbvio, Ivone era aquilo desde o início. Uma vigarista.

_Dá um tempo, Ivone, você não tem nada a ver com isso.

_Tenho sim, -Ela retorquiu com uma ênfase exagerada na voz – Você tá falando com o meu marido!

           Maria Rita iria responder. Iria rir dela, “Seu marido? Que nada, vocês nem são casados, estão é vivendo de favor aqui na casa dos meus pais” mas agora estava pequena. Estava só ali, frente aos dois, agressivos, hostis. No entanto Carlos procurava manifestar-se.

_Tudo bem, Toni, já estou de saída.

­_Não, Carlos, espera, fica... – Ela falou baixinho. Ela não queria agora que ele fosse.

            Precisava sentir-se protegida junto a ele durante aquele momentâneo assalto de uma sensação nova, até então desconhecida, de ser pequena, de estar só frente a um bloco coeso, contra ela.
            Carlos era um baluarte. E algo do seu apelo alcançou o rapaz. No entanto, ao invés de manter-se ali, reiterando a atitude apaziguadora, ele pensou que afinal ela queria que ele a defendesse, atacando Toni.

_É isso aí Maria Rita, vou ficar como você quer e agora eu quero ver quem é que vai dizer que não...

            Estavam todos no interior do quarto, no escuro. Toni aceitara o desafio.

_Quê?! Como é que é?

            Seu vulto deslizou ameaçadoramente para cima de Carlos. Neste momento uma voz soou, argêntea:

_Parem  com isso! O que está havendo aqui?

             A mãe de Maria Rita chegava do hospital. Imediatamente a cansada senhora acendeu a luz e os quatro se imobilizaram.

_Mãe, o Toni entrou aqui...

           Ela ia explicar tudo. Toni interrompeu:

_Mãe, eu não posso deixar...

            Dona Augusta estava confusa, em meio aos filhos que falavam ao mesmo tempo.
            Não entendia porque Toni havia procurado invadir o quarto de Maria Rita. Sem dúvida, a filha havia sido agredida. Ivone mantinha-se calada, com um ar inocente e grave, de preocupado mesmo, como se de nada houvesse participado. Maria Rita e Carlos esperavam que a mãe se pronunciasse a favor da filha.
            Dona Augusta procurou o filho com o olhar. Sentiu, como sempre que o via assim, em meio a uma reviravolta muitas vezes provocada por ele mesmo, aquela onda de ternura, de pena. Toni parecia-lhe tão frágil, tão necessitado dela...

_Maria Rita, você me acompanhe. Seu pai teve alta no hospital. Preciso que você me ajude a trazê-lo com as coisas dele que estão lá.

          Maria Rita estava indignada. Porque ele, Toni, não devia ir com a mãe? Mas vê-lo sair do seu quarto com Ivone a acalmou um pouco. Depois reparou que Carlos e a mãe estavam olhando para ela, esperando que os acompanhasse.
         Resignou-se. Deixou-se ir com eles.
     

      II


                                                                                                                                          ...


                  Ele amava estar no centro. O burburinho louco dos carros passando incessantemente o faziam sentir vivo, desperto. Era um participante. Ser um entre muitos o levava à certeza de ser. Isto lhe bastava. Entregava-se a esta pura sensação de certeza e segurança quanto a si mesmo.
                Nas horas de almoço, quando andava por aquelas ruas da cidade procurava alienar-se de tudo o mais. Possuía-se.
                Um ou outro amigo o cumprimentava às vezes. Seu braço erguia-se em uma saudação acompanhada por um sorriso, um aceno de cabeça, gestos que partiam do corpo e lhe reiteravam ainda mais o estar certo sobre o seu ser igual. Ele não precisava pensar.
                Seu corpo conhecia todos os resultados do próprio funcionamento. O mundo era a sua própria casa, naqueles momentos de andança entre um restaurante, uma livraria, um cofee – shop.
               Geralmente então voltava ao escritório. Voltava ao seu ser parcial, metade ele mesmo, metade o profissional. As questões a resolver, os projetos a criar, a absorção nas tarefas. Estas coisas a princípio não lhe pareciam tão mecânicas, quando resolvera optar por sua profissão, a arquitetura, a qual vislumbrava como a algo criativo, envolvendo o espírito mesmo. Mas os anos de prática lhe haviam mostrado que a rotina possuía mil formas para instalar seus tentáculos em todas as atividades.
               Fernando sabia também que não era só com a profissão que a rotina costumava se envolver.
               Por um instante seus nervos contraíram-se enquanto esperava o elevador no vestíbulo do prédio luxuoso em que trabalhava. Lembrou Marlene, seu casamento, como em um flash, quando alguém subitamente se dá conta do lugar em que colocou algo que estava procurando encontrar e que parecia perdido até então. Preferia porém não lembrar.
                No entanto hoje, sexta-feira, ele viera apenas do almoço ao escritório para pegar o paletó, a maleta, deixar algumas coisas em ordem. Todas as sextas costumava sair, após o almoço, para passar a tarde com Sônia.
                Uma longa inspiração desoprimiu-lhe o peito, ao desviar o pensamento de Marlene, sua rotina impiedosa, o envelhecimento da relação conjugal, para Sônia, sua alegria, seu interesse por tudo sempre renovado, seu amor.
                Ficava com ela a tarde toda, às sextas. Depois, para contrabalançar a frustração de ter que voltar, passava em casa só para pegar a família e dirigir até o sítio que havia sido do pai. Como a família exigira que essas viagens fossem ao menos quinzenais, e não semanais como ele havia proposto, nas vezes em que ficavam em casa ele simplesmente se envolvia com todo tipo de atividade, esportes, amigos, passeios com o filho, tudo. Contanto que servisse para evitar Marlene.
               Sabia que as coisas não podiam ficar indefinidamente assim e não assim – mantendo a duplicidade da sua vida. O sítio e o negócio de laticínios parecia-lhe também uma boa estratégia para o futuro. Asseguraria a sobrevivência da família, nos padrões aos quais estavam habituados, com Ana cuidando dos negócios. E viajaria com Sônia.
               Agora ele abria a porta do apartamento.

_Oi, amor.

            Beijaram-se. Ela estava linda com seus cabelos levemente ondulados, a pele dourada do sol. Vestia um quimono com estampa suave de flores coloridas sobre fundo rosa-chá.
            O apartamento possuía características sóbrias, a estante de pinho algo solene e ao mesmo tempo familiar reinando sobre um sofanete, um tapete, uma luminária no centro quebrando a crueza da luz. Tudo era aconchegante e limpo. Ele se deixou abandonar naquele universo íntimo.


                                                                                                                                       ...
         Marlene abriu a porta do armário.
         Ali estavam as roupas do marido, uma a uma, caprichosamente dispostas em suas capas de plástico, tratando-se de ternos, em seus compartimentos separados, tratando-se de blusas e gravatas.
         Ela cuidava da vida da casa, do marido e das crianças. Procurava fazê-lo bem. Procurava fazê-los sentir-se bem. Suspirou. Mas as coisas estavam mudando.
         O sol visto através da janela continha todo um passado em sua luz. Aquele mesmo quarto mas não naquele mesmo tempo. Uma época em que havia sido feliz, completamente feliz. Imagens daquele antigo ser que ela fora lhe voltavam às vezes, tão íntegras como se estivesse vendo um filme. Ela, o marido e os pequenos passeando, em cinemas, em parques, em pequenas viagens . Ela e ele a sós, o amor que partilhavam...
         Agora...As crianças cresciam.
         Ana era uma moça já, Sérgio com seus onze anos entrava na adolescência. E Fernando...
         Ela sentou-se na borda da cama, pensativa, fechando a porta do armário. O que estaria havendo com eles?
         Porque o marido não a procurava, não a procurava como mulher?
         Neste instante precisou voltar do ligeiro devaneio a atenção para a filha. Ana viera falar-lhe. E sua expressão determinada advertiu a mãe de que havia algo como uma tempestade no ar.

_ Mãe, a gente tem que conversar.

           Ela apenas fixou o olhar no rosto da filha, esperando, sentada à borda da cama.

_Mãe, esta semana eu não vou à fazendola, de jeito nenhum!

           Agora Marlene sentiu a gravidade da situação. Claro, já fazia algum tempo esperava por uma manifestação da discordância que vinha se alargando entre Ana e o pai. Mas ela não poderia imaginar que irrompesse sob a forma de uma recusa simples e imediata.
           Pensava que Ana, um dia, viria interpelar aquela disposição do pai em mantê-la ligada à empresa de laticínios. O próprio projeto não aparecia de modo algum como algo bem claro para elas. Apenas aquilo: a moça deveria preparar-se para assumir um lugar nos negócios – mas qual, como, por quê?
          Porém nada disso aflorava agora na interpelação da filha. Antes, o seu descontentamento, as suas dúvidas, apareciam só como este – não agora. E no entanto, isso era o mais difícil de enfrentar.
          Pois levar o pai a manifestar mais claramente seus planos, levá-lo a explaná-los mais concretamente, defendendo-os frente à sua possível colocação em questão pela parte mais interessada, a própria Ana, isto Marlene via até com bons olhos. Mas simplesmente recusar algo que se inseria como um item na rotina – isto sim, era um problema.

_ Como assim, Ana? Você sabe que nós temos já tudo combinado para os fins de semana...Não dá para alterar as coisas assim de uma hora para a outra.

_Tem que dar! – Ela retorquiu, sentando-se ao banquinho da psiquê. _Eu vou, tenho que ir, ao aniversário da Desireé. Todo mundo vai estar lá. E eu quero que você me diga uma coisa: porque eu tenho que estar na fazendola, no meio do fim do nada, enquanto todos os meus amigos vão à festa?

           Quanto a isso não havia como responder. Negá-lo parecia impossível. Afirmá-lo? Muito difícil, pois se ela o fizesse teria que enfrentar diretamente Fernando. Naquele momento ela viu a filha ali, quase uma menina, e sentiu toda a injustiça da situação. Não era só o fim de semana, a festa ou a fazendola, mas o seu próprio futuro.
           O que estaria levando Fernando a isso? Aquela atitude tão estranha em relação à Ana? Marlene sabia que algo devia vir, algo que ela porém não sabia como enfrentar. Suspirou, tentando ser prática.
           Fosse o que fosse a questão do momento estava aqui e agora. Não adiantaria atrelar a um problema definido um questionamento de proporções não limitadas, envolvendo o futuro deles. A questão era a festa de Desireé, ao menos conforme a própria colocação da filha e portanto convinha muito ficar somente nisso.

_ Ana, eu não posso enfrentar assim o seu pai. – Ela sentiu que estava entre o marido e a filha. _Mas quem sabe, juntas, poderemos apelar para a compreensão dele...

_Ele? Compreender? Duvido! Eu quero é sair daqui agora. Vou para a casa da Fátima. Fico lá até Domingo. Depois da festa, que me importa o que houver? Não quero nem saber!

_Não, Ana, por favor, não faça isso. – Marlene exasperava-se.

_E você vai me impedir? Só porque falta uns meses para eu ser maior de idade ou porque você me sustenta, ou porque o quê?

             Ela estava revoltada. Saía agora do quarto da mãe, seguida por Marlene, indo em direção ao seu próprio quarto. Abriu as gavetas do armário com raiva, tirando algumas roupas que guardou em uma sacola. Fechou as gavetas com tanta força que seguiu-se um barulho abafado.
            Marlene sentiu que não havia mais como resistir ao ímpeto da filha. Deixou-a ir.
            Voltou ao seu quarto, à sua cama. Desabafou, chorando, todas as mágoas acumuladas, a indiferença dele, a insegurança quanto ao porvir...Mas algo dentro dela parecia renascer com as lágrimas, com a força da decisão que ela viu na filha, em si mesma...
            Algum tempo depois levantou-se. Procurou arrumar-se o melhor possível enquanto esperava que o marido retornasse do trabalho. Sabia agora o que devia fazer. “O importante” - Pensou - “ é agir em concordância com o meu próprio coração”.

                                                                                                                                              ...
      

        
            Ana saiu do prédio, caminhando com uma sensação estranha de completa calma. A barreira havia sido rompida e agora que o fizera sentia-se como que transportada a um outro reino do seu mesmo ser, mas novo, um dia pleno, uma certeza...
           Caminhava com a sacola de roupas, conforme fora tudo combinado antes. Fátima a esperava e lá estava, abrindo a porta com seu sorriso amistoso entre as covinhas do rosto em meio aos cabelos curtos, lisos e claros.

_E aí?

_Fui...

         Realmente havia sido assim. Ter ido. E estar aqui.

_Senta aí. – Ela dizia enquanto mostrava à amiga o lugar em que ela poderia guardar as suas coisas no armário. _ Pô , me conta, como é que foi o lance?

           Ana estava trocando a calça comprida por um short confortável. Ficaria com a mesma blusa de malha, tipo camiseta. Acendeu um cigarro olhando à volta, procurando um cinzeiro. Fátima estendeu-lhe um pequeno objeto esmaltado e também principiava a fumar.

_Ah! Fat, que pena eu tive dela. O problema é que com a minha mãe ainda havia alguma chance, mas com ele ...

           A revolta contra o pai parecia expressar-se toda naquele “ele”, mas o fato é que arrefecera. Sorvendo a fumaça ela podia entrevê-lo chegando, sem encontrá-la e depois a decepção, talvez ele não acreditasse no início, depois ter que aceitar... Ela sentia a absurda vontade de ampará-lo. Fez força para voltar ao presente e encarar Fátima:

_Eu não sei no que é que isso vai dar.

           A amiga procurou animá-la:

_Vai dar tudo certo, você vai ver! Agora, vamos pro Shopping.

          “Sim”, Ana sorriu, “Tudo conforme o combinado”.
            Na boutique a vendedora artificialmente solícita parecia distante do mundo. Apenas sua sombra atendia maquinalmente às freguesas impulsionada por um sorriso automático. Fátima comprou uma espécie de terno com detalhes em lamê, debruns e fitas, de um tom lilás profundo. Ana interessou-se por um conjunto claro de saia e blusa de linho, realçando as formas do corpo. Assim armadas para a grande noite voltaram ao quarto de Fátima, ao rádio e aos cds, à conversa amena sobre todos, sobre ninguém.
            Mas Ana relaxara das preocupações. Naquela noite sentia-se como se estivesse nascendo agora, alguém que ela mesma sempre fora mas que jamais havia podido ser, antes.


                                                                                                                                   ...

            Desireé não se achava confusa. Certo, havia mil coisas para revisar, a festa prometia tanta coisa... Logo Maria Rita chegaria. As duas haviam combinado que ela viria pela manhã, ficariam o dia juntas à espera dos convidados.
            Certamente. Mas tudo haveria de se ordenar com método e vagar. Ah... Desireé não era uma menina assim, como todo o mundo. Por exemplo, a lembrança inicial.
            Ela recordava da professora de inglês da sua infância, perguntando: Qual foi a sua primeira lembrança? Todos responderam. Mas ela não lembrava as respostas dos outros. Isso ocorrera há muito tempo. Ela só podia lembrar que havia fechado os olhos e visto, revisto, o grande e soberbo navio, as águas cintilantes pontuadas pelos raios do sol.
            Depois, o templo. Os pais, jovens e românticos, haviam desejado conhecer a Índia.
            Então havia aquela imagem do templo em sua memória, como focos sobrepostos, imagens parciais somando-se no que ela sabia ser o Templo do Sol, em Konarak, mas isso ela sabia, o que não era exatamente a lembrança a qual compunha-se de: a imensidão do céu que estava totalmente azul. As paredes lavradas, muito antigas, dispostas conforme uma união de colunas arredondadas. O teto circular arrumado em camadas de modo que cada círculo acima era menor do que os anteriores, até chegar a uma pequena abóbada que sobressaía sobre todas as demais.
             E as figuras impressionantes. Animais míticos secularmente afirmados sobre o terreno limpo, sem revestimento de espécie alguma, de uma terra clara, aqui e ali sobreposta por um verde rasteiro, brando, da vegetação circundante.
            Estas imagens misturavam-se a outras, como ruas cheias de gente com trajes coloridos e vivos, rostos decorados com marcas brancas sobre os olhos, uma mulher que sorriu especialmente para ela...
             Depois... Bem, essa era a lembrança inicial. Depois as coisas coordenavam-se no seu dia a dia de sempre. Os pais eram artistas. Isso é, o pai. A mãe estava mais para cuidar da casa e da própria Desireé, às voltas também com os compromissos do pai como exposições, viagens e entrevistas. A mãe havia estudado arte mas só às vezes praticava, como uma expansão, enquanto o pai é que fazia o profissional e ela convivia com pessoas que não cabiam no mundo, por exemplo, de Maria Rita, mas também do pessoal da escola, todos com seus horários, sua igualdade.
             Enquanto que havia em sua vida o Emílio, por exemplo, e a Natacha. Emílio era homossexual e fazia filmes pornô para sobreviver sozinho, longe dos pais que o haviam estigmatizado devido à sua singularidade e à sua ambição de ser ator ao invés de bancário. Natcha, a bailarina, que desistira de estudar há tanto tempo, com aprovação da mãe – que simplesmente não sabia quem era o pai da própria filha – a qual vendia roupas em sua loja especializada em hippismo, psicodelia e orientalismo. Havia também o Poeta, assim prescindindo de nomes outros que não o título do que tão somente ele era – e por isso virgem, aos vinte e três anos de idade. E Desireé sabia que a vida tinha um outro lado.
              Não temia a morte, pensava nisso e nas coisas que aconteciam com as pessoas sem que elas soubessem como. A pobreza, o preconceito. Assistia reuniões feministas. Tinha dezenove anos mas poderia ter vinte e sete ou trinta. Seus pais a haviam ensinado que o ser humano pode ser mais do que um programa reproduzido aos milhares em famílias e empregos.
              Mas ela também não era exatamente como eles, tão simplesmente otimistas, com suas cores claras e seu ambiente clean.
              Ela costumava ver o fundo do que havia entre as coisas e pessoas. Nem sempre a realidade conduz ao sonho.Às vezes a mentira está antes da própria consciência dos limites.
              Tudo tinha a sua fraqueza mas também a sua força, o seu encanto. Ela sabia o que era um paradoxo. E agora Maria Rita estava ali, com aquele sorriso triste, perplexo. As coisas estavam assim:

_Vou casar. Deixar a escola depois desse ano em que a gente completa o segundo grau. É isso que o Carlos está querendo. Eu acho...É, eu acho que é isso mesmo que eu quero também.

           Ela falava aquilo sorrindo, mas Desireé sabia que o sorriso era uma máscara. Sabia o que havia por trás, ao menos daquela máscara.

_Bem, se é isso mesmo que você quer... E seu pai, está melhor?

_Não muito. Ele fica na cama o tempo todo. E às vezes anda falando coisas sem sentido.

_Está com arterioesclerose, não é?

_Está. – Mas Maria Rita, embora grata à amiga pelo interesse que lhe fornecia um escape para ao menos tocar no assunto, não iria ao ponto de dizer “O meu pai está terrível. Ele grita com a minha mãe dizendo que a odeia porque ela fica fora de casa o dia todo e o deixa aos cuidados de Ivone que está cada dia mais autoritária comigo.”

               Então Desireé começou a lhe falar que ela devia prosseguir com os estudos ao menos para aprender alguma arte prática como artesanato, por exemplo, para não ficar só dependendo de Carlos. Estrategicamente perguntou se a mãe não lhe tinha feito alguma censura por passar o dia todo fora, com Desireé.
               Não é claro que não, como Desireé provavelmente sabia. A mãe de Maria Rita insistia em que a filha “se divertisse” porque ela andava tão envolvida com a doença do pai... Era Maria Rita a hesitante naquele caso, querendo vir, mas preocupada em deixá-lo só com Ivone. Até mesmo chegara a haver um roubo! A mãe sabia que Ivone simplesmente furtara uma blusa de Maria Rita mas instou para que a filha não fizesse caso daquela “manifestação de carência emocional” da “mulher do seu irmão”.
             E ele, Toni, provocando Maria Rita o tempo todo devido ao seu namoro com Carlos. Queria ele agora marcar e controlar o horário dos seus encontros! Isso ao menos ela contou à Desireé. Mas a amiga conhecia a mãe de Maria Rita. Ela sabia que dona Augusta jamais impediria que a filha fosse embora de casa para casar precocemente.
             Isto é que para Desireé mostrava bem como são os fenômenos do mundo. Porque nesta situação Maria Rita logo havia encontrado alguém como Carlos – e assim o intuito da mãe de Maria Rita que superprotegia o irmão, e de um modo ou outro preferia que a filha encontrasse logo o seu caminho, se completava com a visão estreita de Carlos, o jovem que só queria da vida uma mulher submissa e tímida como provavelmente sempre havia sido a própria mãe dele.
             Maria Rita estava cometendo um erro. Mas conforme as coisas se davam o erro passava por ser a sorte grande.
            E Desireé sabia que a amiga embarcaria no sistema pré-fixado daquela vida.
            No entanto era preciso aproveitar o dia. O que havia para fazer a respeito?
             Desireé achava que uma intervenção direta era impossível. Ela mesma não podia arcar com a vida da outra. Não podia trazê-la para morar ali em sua casa porque sabia que Maria Rita não entenderia sequer a proposta. Maria Rita acreditava realmente que estava decidindo se casar com Carlos. Os problemas da família não eram postos por ela conscientemente em relação com aquilo que afinal era um resultado deles.
            Para Maria Rita a desconfiança e a dúvida sobre se aquela “decisão” era a mais certa se ligavam apenas aos fatos da sua aspiração a continuar os estudos e à sua pouca idade confrontados com a pressa de Carlos em casar agora, a imagem dele do casamento feliz, com a mulher em casa cuidando das crianças. Mas Desireé via as coisas como elas eram, sempre via, mas não sabia intervir. Agora ao menos tratava-se de proporcionar à sua pobre amiga uma tarde alegre. Relaxando na companhia uma da outra. E no entanto a expectativa da festa crescia também. Logo chegariam os convidados...


      III

                                                                                                                                ...
                  

                 Marlene assistiu aquela cena. O marido, o filho, de mãos dadas, fechando a porta. Fernando atribuía a ela a culpa da fuga de Ana. Assim ele resolve ir só com Sérgio para o sítio “resolver umas coisas” e “pensar melhor”. Sobre o quê?


                                                                                                                                 ...

                  
               “Eu não acredito em coisa alguma”, Desireé pensa, enquanto se mistura com as pessoas na festa. “Essas criaturas, esta casa, minha mãe, meu pai, a música... Se amanhã nada mais estará onde está, porque o agora existiria como tal, senão como a música ou um devaneio, um pensamento, uma visão, uma possibilidade, uma fuga, um instante...”
                Desireé se destaca no meio dos amigos. É mais alta, mais presente. Todos compreendem isso a partir do fato da amiga ser modelo, desfilando desde os onze anos e assim é que seu andar traz em seus trejeitos todas as passarelas. Surpreendem-se no entanto, um pouco, por a festa ser tão comum.
                Esperam pessoas célebres, ou no mínimo excêntricas, mas ali estão todos eles. Eles. Sim, só eles, o pessoal da escola, a turma toda, o bando. Mas isto também os delicia.
               Enquanto que Fátima passeia pelas arcadas, sob o luar, e entrevê Joseph sentado com Ana em um banquinho do jardim.

_Eu sinto que a gente devia ter mais liberdade, assim, de querer as coisas conforme o nosso próprio íntimo...

_Claro! – Responde ele. _Por exemplo, a escola, eu sempre pensei que não tinha nada a ver com a escola mas seria impossível não estudar, não é mesmo?

              Ela calou por um momento. Na verdade Ana gostava da escola, mas não queria discordar dele.

_É...Mas tudo, quase tudo, a gente tem que fazer igual, conforme mandam, quer dizer, a gente tem que brigar por aquilo que quer. Se não vira autômato!

_Bom, eu... Eu vou levando...-Ele respirou fundo. _Se eu for mesmo brigar por tudo... Sabe, eu deixo que eles falem. O que eu acho que tenho que fazer, eu faço.

_Mas e quando você não quer e obrigam? – Isso era difícil,   mas ele procurou uma resposta sobranceira.

_Lá em casa, é raro. Geralmente meus pais respeitam, porque também eu costumo fazer o que é preciso, por exemplo, estudar. Eu sei que tenho que estudar, então eu vou lá e não falto, mesmo que não seja tudo o que eu queria, mas procuro compensar através das outras coisas que eu gosto.

             Ana esperou um pouco assimilando aquelas idéias. Não era bem o que esperava ouvir pois sua revolta procurava uma expansão, frases altissonantes, declarações de rebeldia gratuita que fossem, mas sem adesão ao sistema dos pais. No entanto a companhia dele a relaxava. Havia uma fragrância gentil pelo ar noturno, ela percebeu que gostava muito de estar ali.

_É? E o que você gosta? – Nesse momento a música romântica, embalando a festa, soou entre eles.

_Gosto de dançar. Vamos? –Ele convidou.

            Fátima os viu encaminhando-se à pista de dança. Sabia o que iria acontecer em seguida. Sim, eles iriam se beijar, estavam se beijando agora, qualquer um podia ver que estavam apaixonados.                
            Respirou fundo, instintivamente balançando a cabeça em um gesto afirmativo, como que para si mesma. Como então o Joseph... E a Ana... O gesto mental que se seguiu foi semelhante a um dar de ombros físico. Isso mesmo. Que importava?
           “Pô, tá pensando que eu vou encucar por isso?” Com seu passo ágil ela avançou em direção ao burburinho da festa, à massa das pessoas. Logo estava dançando com Mário, que lhe contava coisas engraçadas sobre uma antiga namorada.

                                                                                                                                 ...
             
                  “Não, mesmo que nada seja digno de crédito, uma coisa é real, eu sei, a música... A música é que é real...”

                 Desireé jamais havia se sentido tão sozinha.

                                                                                                                                ...

                Márcia está dançando com Francisco. A música os envolve de um modo tão suave... Ele sente o perfume em seus cabelos. Pensa que ela é uma moça bela, ao seu modo. Procura o seu semblante. Ela o encara. Ela se apaixona.
               Ele sabe que jamais a amará. O que sente é vago, simpático, terno. Mas sabe que Márcia não é “ela”, alguém que ele espera, que ele ainda nem sabe quem é, mas que virá, deverá vir, e sua alma geme na noite, desfazendo-se na pura ansiedade angustiosa da espera.
               Então ele beija Márcia. Por que não beijar Márcia, que está ali, que quer que ele a beije, que provavelmente não espera ninguém além dele mesmo?
               O beijo tem toda a intensidade da sua espera e ela sente a força como paixão. Um beijo assim deve ser amor, ela pensa, e ela o ama tanto ...

                                                                                                                             ...

            
             Maria Rita está dançando com Guilherme. Pensa em Carlos. Ele não havia querido vir. Se sentia talvez desajeitado entre os amigos dela, ele, o menino do balcão. Mas não havia se oposto a que ela viesse.
             Havia a impressão tácita entre eles de que aquela festa era para Maria Rita uma despedida. Pois eles iriam se casar. O mundo da escola, os amigos, aquela festa, Guilherme que a olhava em silêncio, tudo ficaria no passado, para sempre, como um sonho.
          Guilherme sentia algo da sua nostalgia. Ele sabia que Maria Rita estava indo embora com Carlos, que ela não lhe pertencia. Ele apenas a olhava, como em um sonho...
  
                                                                                                                                  ...

               As paredes pareciam se fechar ao seu redor. A casa vazia em completo silêncio brilhando através dos seus cristais, de sua brancura. Marlene não queria ligar a televisão, não queria telefonar a ninguém, ela só queria pensar.
             Como é que as coisas haviam chegado àquele ponto? A recusa de Fernando em levá-la ao sítio, na ausência de Ana, era como um aviso, uma intimação. Era preciso encarar aquele fato novo e urgente, seu marido estava indo embora, estava abandonando-a e se há muito ela o pressentia, agora não havia mais como utilizar algum confortável “depois eu vejo isso.”
             Tudo se tornava premente, o momento se destacara do tempo, ela sentia-se um fragmento de sua própria história porque ela era toda a sua rotina e agora a rotina se desfizera naquele súbito afastamento.
            Então todo o arrumar e cuidar e conservar e embelezar e os horários e as compras e tudo, tudo, não valendo mais, o que dela restaria, o que ela era na verdade sem o seu próprio ser?
            Deitada no escuro, a mente caótica, procurando-se... imagens loucas lançando-se umas sobre as outras. Ele, decerto... Sim, haveria alguém? Mais alguém?
            A dúvida sobre a existência de uma outra estava permeada, como qualquer coisa pensável, pela sensação de estar se desfazendo em meio ao modificar de todos os elementos que compunham o seu ritual de ser ela mesma.
            O café da manhã do marido. A escola das crianças. Supervisionar o almoço. Instruir a arrumadeira, a faxineira, a passadeira. Controlar a roupa da lavanderia, a máquina de lavar. Ás quintas o cabeleireiro, para estar apresentável para ele. Tudo era para ele, ela era aquele tudo... Sentia-se dissolvendo como esse tudo e algo mais... Buscando um ponto de apoio, agora. Mas em quê? As crianças. Sim, certamente, as crianças.
           Mas Ana não era mais uma criança. Sérgio, ah! Se ele houvesse deixado Sérgio ali com ela, ao menos...
          E Sérgio também cresceria, como Ana.
          Não haveria o que fazer?
          Sim, era isso! Dedicar-se-ia a obras beneficentes.
          O vazio de corredores de instituições prováveis perpassavam-na como correias que a transportavam através da escuridão. Subitamente levantou-se. Acendeu a luz.
         Suspirou com certo alívio. O médico recomendado pela amiga, que lhe fornecera aquela receita, lhe garantira um sono sem esperas por conta de uma consulta bastante cara.
         A vermelhidão da pílula parecia uma coisa alegre, em contraste tão profundo com toda a atmosfera que a envolvia que ela, involuntariamente, riu.

                                                                                                                                ...
          
              Desireé se aproxima de Maria Rita. A amiga separara-se da companhia de Guilherme e parecia ter se destacado estranhamente das pessoas. Desireé sente algum calor junto a ela, a despeito de uma certa melancolia. Subitamente pensa que não quer que a festa acabe nunca.
           Observa tudo através dos olhos selvagens, sombreados por cílios longos.
           Pares dançando à meia-luz. Pessoas passeando juntas pelo jardim circundante. A música eterna. Sorri para Maria Rita. Deixa que o tempo passe. Amanhã ainda estaremos juntas, ela pensa.
          Não, Maria Rita você jamais saberá. Jamais terá a noção do quanto esteve aqui, aqui dentro, dentro do meu próprio sonho... Certa de estar protegida pela ignorância da outra, segura a mão da moça que lhe corresponde o gesto afetuoso com gentileza e amizade.
           Desireé estende-lhe uma taça que retira da bandeja do buffet. Compartilham a champagne. Maria Rita não sabe que Desireé a ama e os convidados, depois de muito tempo, como se fosse todo o tempo da sua vida, se despedem e saem.

                                                                                                                             ...

          
               Maria Rita vem andando. A rua é novamente o sol. Em sua visão o movimento das pessoas, o tráfego, a profusão das casas, das cores, tudo se mistura com cenas de ontem, lembranças vívidas da festa.
               Guilherme tão amável, tão amigo... E Desireé... Revê o olhar esfuziante de Ana, contando-lhe que “estava” com Joseph. Algo da magia das canções ressoando ainda em seu ser equivalia quase a estar novamente entre as cenas, a pequena multidão reunida entre as folhagens, à meia-luz. Mas quanto mais se aproximava de casa mais seu coração se confrangia.
                Saíra no dia anterior, hesitante, sem saber se deveria deixar o pai ali, sozinho com Ivone. A mãe garantira-lhe que deveria ir e que deixasse estar, o pai estaria bem assistido. Que contraste entre o que ela encontrava entre o pessoal da escola e o seu próprio mundo familiar.
                Logo estava abrindo a porta. As persianas fechadas conservavam a sala em certa penumbra fresca, agradável, compensando a ofuscante luminosidade do exterior.
                Depositando a bolsa à tiracolo no sofá, juntamente com a maleta que acomodava as roupas usadas em casa de Desireé, foi à cozinha, após lavar as mãos no banheiro contíguo à sala de estar, procurando a garrafa de água na geladeira.
                 Esperava encontrar Ivone ou a mãe. Pela hora, quase meio-dia, Tôni deveria estar dormindo. No entanto não havia ninguém.
               Procurou em todos os cômodos para se certificar, até chegar ao quarto do pai.
               Ele estava deitado, só, uma expressão indizível em seu rosto. Ela adiantou-se até o leito:

_Pai, você está bem?

_Água...Traga água...

                  Maria Rita já ia saindo do quarto para atender-lhe o pedido quando seu olhar pousou sobre a mesinha de cabeceira, disposta com um jarro d’água, um prato com frutas, biscoitos e um copo.

_Mas pai, você não viu que tem água, bem aqui?

_Eles saíram! Os salafrários, os reles, os vis!

_Quem, pai? – Ela perguntou servindo-lhe a água e resignando-se a ouvir o mesmo rosário interminável de acusações.

             Enquanto o velho explodia em cólera contra a mãe, Tôni e Ivone, por terem-no deixado só, Maria Rita pensava que, à parte as escandalosas injúrias proferidas praticamente aos berros, ele não estava assim tão completamente errado. Seu estado exigia cuidados, ele não devia de modo algum ser deixado sozinho.
             No entanto, algum tempo depois, tendo sorvido o líquido como se estivesse há longo tempo sem beber, prostrou-se, o olhar vago, perdido, como que dando-se conta da própria inanidade: um velho no quarto vazio. A imagem do abandono.
             Ela perdeu a noção do tempo, naquele instante, ali, contemplando o corpo inerte do pai.
             Compreendeu o limite tênue entre o ser humano e o nada, mas esse nada podendo ser vivenciado como a condição absoluta do humano. Seu pai, prestes a não mais estar, nem ser, indo-se para sempre e sem consolo algum, nem a mãe nem Toni, muito menos Ivone, prestariam-lhe qualquer gesto íntimo, dispensando-lhe apenas um cuidado maquinal e ela...
              Ela queria poder alcançá-lo em sua solidão e dizer que compreendia, que se importava, mas ela...
            Quem era ela ou o que podia assegurar-lhe? Que não morreria? Ele, com seus setenta anos, esclerosado, desenganado? Ou que a mãe se importava, a mãe, que Maria Rita não poderia sequer imaginar onde estivesse agora?
         Mas logo o pai voltou daquele estado estupefato, vociferando contra ela própria, pois por algum motivo agora se dera conta de que a filha não havia passado a noite em casa.
            Maria Rita, nestes momentos em que ele se irava com alguém que estivesse à sua frente, desde que a esclerose havia avançado tanto, já havia constatado que o mais prudente era afastar-se, ainda mais estando ambos a sós, pois o risco dele querer agredi-la fisicamente era real. Ela saiu do aposento, passou pela sala e trancou-se em seu quarto.
           Teria que esperar até que ele voltasse ao estupor, ou se acalmasse sozinho, para poder tomar um banho e almoçar, sem riscos.

                                                                                                                                           ...

         
             Márcia contava agora à mãe que estava namorando com Francisco. Dona Zulmira, meiga e muito branda em seu avental de domingo, escutava a filha enquanto fritava porções de frango, na cozinha ampla, decorada em linhas bastante arrojadas.
             Gostava de saber que Márcia estava namorando.

_E quando ele vem aqui para nos conhecer?

_Hoje a gente combinou de se encontrar no clube. Vamos ver quando vai haver as apresentações...

            Márcia, sentada à mesa da cozinha, esperando o almoço, sorri para a vida que lhe parece espetacularmente bela esta manhã.

_Fico feliz por você, Márcia. Mas olhe lá, não vá deixar que o namoro atrapalhe os estudos. Você sabe que a prova do conservatório está perto.

            O tom peremptório da mãe nunca a desagradava de todo. Transmitia-lhe desde pequena uma sensação de confiança que a tranqüilizava. Mas a prova do conservatório...
            Márcia levantou-se. Murmurando algo como “claro, é verdade”, ela se afastou da cozinha e da conversa, da mera idéia “prova do conservatório”, porque aquilo a exasperava.
            Como enfrentar a mãe, o pai, o universo cósmico que fosse e simplesmente anunciar ; “Ölha, vou me inscrever no vestibular de química”? Logo, em seu quarto, ligou para Maria Rita.

_Oi, Mary, é a Márcia.

           Maria Rita ainda esperava que tudo se acalmasse para tomar um banho e ver se havia qualquer coisa pronta para almoçar. Falar com Márcia, em todo caso, ajudava a passar o tempo e provavelmente a faria dispersar os tristes pensamentos nos quais estivera imersa desde os vinte minutos em que fechara-se no quarto. Primeiro, Márcia falou sobre Francisco.
          A amiga quis saber se aquilo era mesmo sério ou se apenas os dois haveriam de ter “ficado” na festa, por aquela noite.

_Claro que é sério, Mary, imagine... Eu e ele vamos nos encontrar logo mais à tardinha, no clube.

            Maria Rita não estava tão segura quanto à novidade que Márcia lhe contava pois, por tudo que se lembrava dele, Francisco era um cara que vivia no mundo da lua, não costumava levar nada à sério e sendo assim, porque é que haveria de começar a prestar atenção nas coisas e a manter compromissos, logo agora?
             Mas não falou de suas desconfianças à amiga, que se mostrava tão entusiasmada, nem de suas próprias misérias de família. Ademais era Márcia que queria falar e falar.
               Assim, depois de um bom tempo decantando o charme do namorado ela abordou o “verdadeiro” assunto do telefonema.

_Já resolvi, Maria Rita, vou me inscrever em química!

             Entre todas as pessoas do mundo Maria Rita era efetivamente a única a poder aquilatar o alcance real desta declaração, o peso que encerrava dentro da perspectiva e dos sentimentos de Márcia, que a proferia agora, com um tom peremptório e final. Com muito tato ela congratulou-se com a amiga “Por assumir a sua verdadeira vocação” .

_Claro, claro! – Márcia continuava. _Vencer é isso! Assumir a sua verdadeira vocação!

              E Maria Rita estava então algo emocionada por ser ela a participar do feliz desenlace daquele mini-drama íntimo.

                                                                                                                                     ..       

    IV-


                                                                                                                                    ...
                                                                                        

              Os pequenos cômodos luminosos, frescos. A companhia dela aconchegada ao seu lado. Tudo lhe fazia sentir tranqüilo e feliz. Mas sentia também que a grande resolução estava pressionando, devendo ser então logo assumida de uma vez por todas.

_Mas meu amor – replicava Sônia procurando fazer com que ele sentisse o quão sinceras eram as suas palavras, _Eu não faço questão de nada. Você sabe, o que me importa é que possamos nos ver, estar um com o outro nessa nossa intimidade tão perfeita, sem precisar disfarçar o que sentimos, estar aqui, nós dois, a sós. Eu só não suportaria mais ter que te encontrar sem manifestar o que sinto.

            Sônia se referia agora, sem dúvida, à época em que ela havia trabalhado no escritório de arquitetura com Fernando. –Mas, - ela continuou, _Já que temos isso, nossos encontros, nossa intimidade, eu não me importo com o resto. – Aqui ela hesitou um pouco, pensando se havia sido inconveniente se referir a uma realidade que incluía a família dele como a um “resto”. _Quer dizer, com a sua família... –Ficou pensativa, intrigada quanto ao efeito de suas palavras. Mas ele havia compreendido sua intenção. No entanto era ele que não mais se contentava com o aspecto clandestino daqueles encontros.
                Fernando sabia que seu próprio modo de ser não suportava a duplicidade, a farsa. Ele amava Sônia, sem sombra de dúvida. Sentia que era então muito mais honesto assumir o relacionamento e ser sincero com Marlene, desobrigando-a também do compromisso conjugal pois afinal ela poderia, quem sabe, ainda vir a ser feliz com alguém. Procurou esclarecer seu ponto de vista junto a Sônia.
               Ela não disse nada em resposta. Limitou-se a segurar-lhe a mão, um pouco mais forte, como que simplesmente aquiescendo.
               Mas seu semblante doce, os olhos semicerrados, o leve sorriso quase imperceptível, tudo deixava entrever-lhe o êxtase.

                                                                                                                                         ...


                  O quarto do motel era enorme, muito elegante com um cheirinho de eucalipto. Ana e Joseph chegam quase às lágrimas de tanto rir enquanto abrem a porta do aposento com as chaves fornecidas por um funcionário da portaria. É que estavam sempre assim quando juntos, festivos e achando tudo no mundo incrivelmente engraçado.
                  Mais tarde, jantando, Ana aborda algo que a preocupa.

_Você está sabendo do lance do meu pai, do sítio do meu avô, não é? Pois agora você sabe o que o meu pai fez? Marcou de almoçar comigo em um restaurante para ter uma conversa. Olha, Joseph, estou meio apreensiva... O que será que ele quer? Já pensou se ele resolve de repente que eu tenho mesmo que assumir o sítio, a empresa e tudo... Como é que a gente vai se encontrar? Lá é tão longe...

               O brilho do olhar dele é intenso, quase de loucura, de embriaguez. Ele se sente esfuziante junto a Ana, como se nunca houvesse realmente se apaixonado antes. Mas aquele estado entusiástico o levava a uma ligeireza, uma celeridade de espírito que não podia ser forçado a deter-se frente a qualquer preocupação, que queria apenas abarcar o mundo através da delícia das sensações, da intensidade... De repente Ana percebeu que Joseph não lhe tinha prestado atenção, ou não ouvia ou fingia apenas tê-lo feito. Desconfiada pensou se deveria repetir tudo... Mas então olhou para ele, ali ao seu lado.
               Sem camisa, a roupa íntima realçando as formas do corpo belo, ocupado em olhar a enorme tela da Tv à sua frente, voltando-lhe o olhar, sorrindo para ela, simpático, sem tensão. Ela sentia que possuía um conhecimento instintivo dele, um conhecimento corporal, para lá das palavras.
              Deixou-se ficar junto a Joseph, quieta, tímida, terna, em frente à Tv.

                                                                                                                              ...  

            
              Na manhã de sol claro Márcia sai da escola um pouco mais cedo e faz a inscrição para o vestibular de química. Alguns dias depois está sentada, como de costume, ao piano.
              Sente que o exercício está mais leve, mais fluído. Alguma coisa está colorindo as notas. Oh! Não, você não é conservadora e simplória. Você quer o desenvolvimento da vida, o conhecimento avançando sobre as limitações humanas e então Márcia percebe que há uma repartição entre o que é a limitação auto- imposta e o que é uma limitação real. Assim enquanto o conformismo é auto-imposto a falta de domínio sobre as coisas é real e a ciência pode ultrapassar esse limite concreto.
              Ela sonha que a partir daí a sociedade pode alcançar um novo patamar de conscientização, o nível da vida poderá crescer em todos os setores, para todas as pessoas, etc. etc. Então...
               Lá está a imagem de Francisco, sempre nela, grudada em seu íntimo como um peso dentro do seu peito, um item somado à respiração. Tudo parecia às mil maravilhas, ela inscrita no curso da sua vida e namorando o homem que ela ama, mas... Mas ele a desconcertava. E ela nunca tirava dez em química.
              Suas notas eram sofríveis. Quereria isto dizer alguma coisa? E ele estava sempre a pedir-lhe dinheiro. Sim, ele ligava: “Vamos sair”. Então ele sugeria, exortava, exigia: “Vamos aqui e ali”. E para tanto era preciso pagar.
             Mas ele nunca podia pagar enquanto que ela sempre arrumava uns e outros cobres, portanto, que mal poderia haver em uma namorada contribuir com o detalhe insignificante das despesas?
              A música saía compassada, exata. Pensar nele a levava ao máximo de si mesma. Mas agora sentiu algo destoante, uma interferência... Sim, a irmã estava ali. Ela virou-se, olhando à volta, buscando o vulto que sentia ter entrado na saleta onde o piano estava instalado. De repente parou e encarou-a interrogativamente. Xana queria mesmo falar-lhe. Estava furiosa.

_Então é isso, você de repente está desistindo de tudo e acha que o resto que se dane! Que significa isso, Márcia?

               Chocada, ela percebeu que a irmã segurava o seu papel – o seu precioso papel- comprovante da inscrição no vestibular de química! Levantou-se da banqueta com um sobressalto, estendendo a mão, procurando em vão recuperar o papel.
              Xana afastou-se dela, o rosto fechado, carrancudo. Sentou-se no sofanete afastando as partituras que Márcia empilhara ali, conforme o seu método de estudos.
               Como sempre a figura proeminente da irmã, a pele muito clara, os cabelos intensamente loiros, avermelhados, ocupavam todo o espaço ostensivamente, era ela, tudo em volta era só dela e Márcia sentia-se implodir.
              O que havia de seu ao redor, o que dela, antes de Xana surgir, estava solto ao redor, despreocupado ali, súbito, à entrada da irmã, se retraía, era absorvido para dentro do seu corpo que encolhia. A outra estava calma agora, conservando porém o semblante autoritário, o porte incrivelmente altivo, majestoso.

_Márcia, vamos falar sério. Isso aqui é o futuro, compreendeu? O que você espera? Acha que de repente vai chegar e falar “Pai, mãe, estou fazendo química”, enquanto o papai juntou todas aquelas economias para você concluir o conservatório e começar a ganhar a vida como professora? Será que você não pensa nisso?

              Márcia sentia um abismo aos seus pés, queria recuar, ficar quieta, em silêncio, não dizer nada, nada...
              Mas também sentia que não era possível não responder, o olhar de Xana era uma fogueira, tudo nela se impunha, era necessário obedecer, mas ela sentia-se devorar naquelas chamas de ira.

_Xana, eu... Como é que eu vou dizer isso a você? Droga, porque eu tenho que dar conta de tudo que eu faço, para você?

_Porque você é minha irmã! Porque eu estou falando para o seu bem e pelo nosso futuro, da nossa família, de tudo isto aqui!

              Ela fez um gesto amplo, como que abrangendo mais do que apenas o espaço circundante . Ficou ali, assim, por um instante, calada. Márcia pensou que ela ainda esperava uma resposta sua mas logo a irmã tornou a falar.

_Você sabe, se não fosse por você tocar tão bem, por eu saber que essa é a sua vocação, eu nem iria me intrometer.Mas desde criança você tem se dedicado ao piano. Não é só o que nossos pais esperam mas também o que é importante para você.

            A mudança surpreendeu-a um pouco. Agora o tom na voz de Xana era pausado, sem agressividade ou ânsia, apenas uma espécie de raciocínio construído passo a passo.
           A tarde esvaía-se, a noite começava a estender seu reino pelo mundo. Márcia deixou-se levar um momento por uma suave aragem que percorria o pequenino aposento.
           Logo voltou a ouvir a voz da irmã, cheia de um acento benévolo:

_Então, o que significa isso aqui? – Ela ostentava francamente perante o olhar de Márcia, o documento da inscrição. _Apenas uma ilusão, só isso. Porque você já tem o seu caminho na vida e fica aí tentando se desviar dele por uma coisa que está só na sua cabeça. E olha, pense bem: como é que você vai sustentar esses estudos se o papai já tem tudo preparado para o profissionalizante no conservatório?

             Agora ela esperava claramente uma resposta. Márcia no entanto olhava como que hipnotizada para o papel, seguro às mãos de Xana. Pensava ardentemente asir-lhe o documento, antes que a irmã pudesse se dar conta, calculando para isso o instante exato de um golpe rápido e seguro que a fizesse recuperar a papeleta da inscrição. Mas o modo como Xana o guardava agora, firmemente, em seu colo, impossibilitava-lhe o gesto e ela dava-se conta da necessidade de responder.

_Eu vou conversar com o papai, ele vai entender, Xana.

                  O som de sua própria voz a acalmou. Ela prosseguiu.

_Eu gosto de tocar, é verdade que é uma coisa que eu exercito desde pequena, mas sou eu quem devo escolher a minha própria profissão, afinal.

               Procurou ser cortês, como se a sua correção pudesse compensar o comportamento da irmã, seu abuso, sua indiscrição:

_Agradeço, de qualquer modo, o seu conselho. – Falou, com voz contida, enquanto Xana esperava, ouvindo. _Mas eu estou resolvida quanto a isso. E agora, -Márcia não pôde evitar a leve hesitação que transpareceu em seu falar _Por favor, Xana, me devolva o papel.

              A irmã encarou-a, zombeteira.

_Ah! o papel! É isso que você quer, só isso, o papel... Pois olha, toma aqui esse ridículo papel. _Ela jogou a papeleta da inscrição na direção de Márcia.

               Sem que esta pudesse evitar o papel desviara-se e fora pousar a um canto, desoladamente, no tapete da saleta. Márcia agachou-se para recuperar o documento e viu dali, naquela humilhante posição de cócoras, a figura de Xana agigantar-se sobre ela enquanto a irmão punha-se de pé, levantando-se do sofanete.
              Apressadamente ela levantou-se também enquanto a irmã proferia estas palavras ameaçadoras:

_Fica com ele, fica! Porque também o que é que adianta? Você não vai mesmo passar na prova do vestibular...

               O rosto dela desenhou no ar uma expressão indescritível de escárnio. Saiu da sala. Márcia ficou só, com o papel da inscrição pendendo em sua mão.

                                                                                                                                          ...
             
                 Francisco desceu a ladeira com calma, bem devagar. Queria saborear aquele instante, como sempre fazia, o qual ele considerava o mais perfeito entre todos os instantes repetidos que compunham o mosaico da sua rotina. Era quando o fumo estava no forro escondido da calça, era seu, ele sabia que o poderia desfrutar na maior tranqüilidade, em seu quarto, bem daqui a pouco.
                Mas até chegar lá teria que passar pela esquina, onde as ruelas sem fim da favela desaguam no asfalto alcançando-se assim o perímetro urbano. E ali é que poderia haver o "bote". E se os “hômi” não estivessem, tudo estaria bem.
                O garoto não sabia o que era mais perigoso. A parte em que estava lá em cima, sujeito aos tiroteios, ou esse trecho em que a polícia poderia aparecer. Mas naquele instante da descida, em que não houvera nenhum tiroteio, em que a cidade era ainda apenas uma possibilidade aberta entre caminhos que se bifurcam, ele podia simplesmente estar ali, na favela que ele amava, sentindo a fragrância pura daquelas vidas sem esperança, das lavadeiras, dos operários, dos mecânicos de automóveis.
                  Sorvia intensamente o reflexo do sol se pondo por trás da paisagem, a cidade jazendo lá para além das encostas, aos seus pés, enquanto as árvores e todo o complexo da vegetação da favela ainda ali consolava-o, abrigava sua alma cheia de ternura e sal, o sal da sua carência, das suas desilusões, da sua pequenez, do seu ser sem importância alguma, do seu puro estar.
                  O fumo camuflado em sua calça impulsionava seus passos, ele lhe pertencia, assim como também Francisco pertencia ao fumo, à sua erva, ao seu pó. Sempre o mesmo pensamento voltava. E se não precisasse mais ter medo? Nenhuma possibilidade de tiroteio, nem dos hômi na esquina a extorquir-lhe dinheiro depois de alguma maldade durante a brincadeira de gato e rato, “Onde é que você estava?”, “Cadê o lance?” ..
              E se pudesse, com a consciência tranqüila de um bebedor de Whísque, comprar tudo aquilo em um botequim, sem pressa, sem nenhum, mas nenhum medo, mesmo?
            Ele sentia a revolta pela condição de pária a que fora submetido sem que lhe perguntassem porquê. Mas o abandono dos sentidos ao tempo da descida, o seu amor pela singeleza das coisas, a arquitetura fractal da favela, a “Shanty – Culture”, a presença da vegetação, isso vencia então, o fazendo aceitar tudo e a revolta calava em seu peito, acalmada como um cão à noite que encontrara o seu abrigo e o seu jantar.
            Ele e os outros anônimos iguais a ele... Porque iria a Senhora Sociedade se importar em mover um dedo para livrá-los da exposição constante ao risco de vir a engrossar as estatísticas dos que não voltavam "lá de cima"? Porque viriam a se importar com eles, os párias, os coisa- alguma, os “João Ninguém"?
         Ah! sim, estavam todos os senhores importantes bastante ocupados com a guerra, provavelmente adorando o espetáculo das bombas, dos obuzes, das metralhadoras, e “Vamos equipar nossa polícia” e “Guerra total ao consumo” e os senhores bem postos – para quem a droga chegava com um estalar de dedos, na bandeja de alguma festa grã-fina, arrotariam que “devemos responsabilizar os usuários” ...
           Enquanto que eles, os Coisa – Alguma e os João-Ninguém largavam sua pele exposta ao vento para apenas ter a sua reconexão com a parte da consciência que ficava em algum lugar do seu próprio ser na qual a mentira naufragava ao redor enquanto o sentido das coisas podia ser saboreado, cheirado, convocado à vontade e ele sabia tudo, era tudo, esquecia a nulidade, a mecanização, os horríveis tons metálicos da pintura na cara da Senhora Sociedade Oxigenada Pontocom.

             Que importava?

             Depois, ligou para Márcia. Não, não estava precisando de dinheiro. Queria dizer para ela somente isso: não estava precisando de dinheiro agora.
             Enchera um caminhão de bananas e ganhara alguns trocados. Vendera cartuchos velhos e ganhara mais alguns trocados. Estava rico, com seus cento e cinqüenta reais armazenados lá no quarto. Quereria ela ir ao cinema?
             É claro que sim. Mas não, não vamos ver os filmes sobre a droga ou os documentos sobre “Oh! O que eles são capazes de fazer por aí...” etc. e tal, porque não, não tem nada a ver com isso aqui, Márcia, isso para que todo esse esquema afinal existe, esse esquema grotesco e errado, isso aqui, os Coisa -Alguma, os João-ninguém sem importância, sem importância nenhuma, nenhuma...
            Vamos ver um filme com música, também sem xaropes de romance que a gente sabe tudo desde o início... Ou vamos ver um filme sobre as possibilidades do amanhã, sobre as máquinas logradas, sobre a Inteligência Artificial... Vamos, Márcia?

                                                                                                                                    ...

            Maria Rita está no táxi, o pai ao seu lado, sozinha com ele, o motorista a olha demasiado através do espelho do retrovisor.
             O pai está indo para o hospital. A mãe está ocupada. Tôni anda por algum lugar, quem sabe onde... Ivone, não, Maria Rita não quis que Ivone viesse. O pai está tão pequenino, curvado, magro, sem falar coisa alguma desde que saíra de casa apoiado em seu braço. Olhando para trás, na direção de casa, por um momento, ele dissera:

_Acho que já não volto...

              E Maria Rita compreendera o seu silêncio. Mas estaria mesmo o pai indo embora para sempre? Pelo espelho retrovisor o motorista muito jovem olhava para ela de um modo francamente sensual. De repente sentiu raiva dele. De repente era uma aragem fria, um tipo de pergunta que ela nunca antes havia tido a necessidade de se fazer. Aquilo... O que era tudo aquilo?
            O que significava por exemplo, agora, uma moça, noiva, honesta, de família, sendo paquerada daquele jeito pelo motorista como se estivessem todos indo a um baile, como se fossem todos jovens, como se alguém não estivesse indo morrer?

                                                                                                                                   ...

           
              Marlene entrou na loja ampla, silenciosa. Havia música, mas também silêncio, ambos estranhamente misturados no espaço amplo. Como se a música não pudesse romper o silêncio das coisas. As roupas coloridas eternamente imóveis nos cabides. Oferecendo-se por quinze, por dezenove, por vinte e cinco... Porque é que Marlene viera a uma loja assim tão... inconseqüente ?
              O tipo de loja freqüentada por secretariazinhas, por auxiliares de departamento pessoal, por digitadoras, por agentes de crédito... E o que era Marlene?
              Havia sido uma esposa.
              Havia cuidado da casa, havia sido a sombra por detrás do grande homem. Havia criado os filhos. Agora mesmo deixara o Sérgio em seu colégio e dirigira até o centro para andar por ali, para ver o que existia. O que existia era um mundo para cartões de crédito.
             Para folhas de pagamento e títulos profissionais.Não assinavam carteira de esposa. Portanto ela não era nada. Novamente as lágrimas afloravam em plena rua. Novamente ela prendeu a respiração contando até dez para enganar as lágrimas e continuar... continuar o seu nada que naquele momento consistia em percorrer aquela loja vazia, cheia de blusas, saias, calças, vestidos, lingerie, underwear, bolsas, cintos, sandálias, sapatos, tudo de um gosto vulgaríssimo, tudo feito para atendentes de clínicas odontológicas, para recepcionistas e moças de escritório... Que é que tinha? Porque não?
            Ela estava acostumada às grandes marcas, às roupas adequadas ao seu ambiente, à sua idade, ao seu nível social, ao seu gosto bem formado, à sua educação católica, à sua auto imagem – mas quem era ela?
           Ela era uma mulher que havia amado um homem. O seu marido. Mas ela o amaria mesmo que não fosse o seu “marido”, ela o havia querido sinceramente pelo que ele era, independente de terem sido arrastados à armadilha, independente de terem criado os filhos, de serem o Sr. e a Sra. Fulanos de tal.
            Sim, aqui estava a verdade. O núcleo de ter sido uma esposa. E do que adiantava a verdade? Quem sabe onde ele estaria naquele exato momento, onde ele estaria agora?
              Então estar ali naquela loja era como um atentado contra si mesma. Porque ser esposa, amar um homem, ter personificado uma rotina como quem sustenta o universo em cada gesto rigorosamente igual – isso agora já não era mais nada. Poeira do passado pulverizada por uma porta batendo e se fechando para sempre.
          Mas sobrara um resto, um resíduo. Aquela coisa que respirava. Aquilo que, embora a contragosto, ela tinha que reconhecer que era ela mesma. Ela. Lutando para se manter à tona. Vamos usar isso que todo mundo usa. Vamos ser.
          Vamos... Quem sabe ele me olha a diferença? Quem sabe então retorna? Não foi uma coisa mesmo assim que ele preferiu? Não foi? E se ela pudesse ser também assim? E se pudesse compor uma nova rotina dos estilhaços daquela que se rompera?
            Tateando as peças, as humildes peças cujas cores fortes se auto- afirmavam numa vanglória triste. Experimentando-se outra no espelho. Não sou nada. Não combina. A loja vazia, podia ver a poeira sobre as peças abatendo-se como o coalhar da luz do sol, como o tempo inexorável, as rugas nos cantos da boca, o tempo...
            As roupas penduradas gritam” “Você não é daqui! Fora! Fora!”
            Marlene larga tudo na cesta, a um canto, as peças que tentara recolher. Sai da loja sozinha, impenetrável ao fluxo intenso do movimento ao seu redor. É alguém que afinal obteve uma revelação.

                                                                                                                                   ...
          
_Senta, poeta. Olha, hoje não tenho nada, viu? Aquelas bolinhas maravilhosas para fazer a nossa festa particular... Você sabe – ela parou, ante o riso dele – Eu só uso muito de vez em quando... Mesmo assim, acabou.

              Ele não se importava. Seu corpo muito claro, as sardas sobre a pele, os cabelos cheios, escuros, suas mãos algo infantis. Seria ele um ser etéreo, uma entidade do mundo élfico? Ela adorava estar com ele. Desireé, os cabelos longos, cor de mel, sobre a pele dourada, sentia-se extasiada com a quietude, pureza, a promessa da presença dele. O poeta quando vinha vê-la era como se anunciasse um mundo futuro... O mundo em que ela queria ter nascido. Tudo em cor, som, brilho, sensação. Tudo como ondas sobre um mar tranqüilo.

_Não tem problema, Desireé. Na verdade tenho procurado deliberadamente por uma consciência limpa. Como eu sou, eu mesmo. Como posso sentir as coisas o máximo possível, entendê-las até o íntimo apenas pela minha percepção pura, assim como ela é.

             Desireé estendeu-lhe ainda assim um copo de bebida. Ele aceitou, indiferente, logo principiando um comentário extenso a respeito de movimentos artísticos contemporâneos, gestos e atitudes de pessoas famosas, tudo com um acento característico de ironia, de crítica misturada à admiração.
             Mas Desireé sentia-se tão inabitual... Desde a festa do seu aniversário, há duas semanas, não tivera nenhum contato com Maria Rita, afora os encontros casuais no colégio.
              Evidentemente não tinha qualquer esperança de ir com ela a qualquer coisa além de uma simples e casta amizade, mas sabia-se apaixonada, não se envergonhava da própria diferença, de sua atração de mulher por uma outra mulher. Mas... gostava de estar com ela, de qualquer modo. E não mais fora possível.

_A convergência entre as revoltas artísticas contra os dogmas e formas prefixadas e o sentimento das minorias... dos homossexuais, das mulheres, dos proletários...Isso é a modernidade, a vanguarda.

                 Desireé o ouvia falar e de vez em quando até respondia:

_Sim, mas em nossos dias o sentimento minoritário se confunde com a universalização dos valores via globalização e a arte reassimila as formas prefixadas assim como as pessoas só querem um protesto previamente programado...

               Ao que ele não se deixava intimidar em seu entusiasmo para com a capacidade libertadora da arte:

_Não deixa de ser verdade isso, mas e aí? Não quer dizer que os problemas reais tenham sido resolvidos ou que as questões reais tenham sido respondidas. Portanto a tarefa agora não está, como sempre, na reprodução das palavras de ordem, mas no desenvolvimento dos veículos aptos a captar as vozes que estão em silêncio por não possuírem slogans, justamente. O desorganizado, o amorfo, o cego-surdo-mudo, compreendeu?

                  Desireé que estivera sentada no parapeito da janela, levantou-se. Sua saia indiana, ampla e confortável, por um momento roçou o braço dele, que recostava-se no sofá do quarto bem guarnecido, sendo que o móvel situava-se junto à janela.
                 A luz do sol, que estivera bloqueada pelo corpo dela, batia agora em cheio sobre o poeta. Seu corpo claro parecia acolher a luminosidade com maestria, festivamente, em silêncio. O copo em sua mão continuava pleno, como se ele não tivesse pressa em beber ou protelasse propositadamente a absorção do álcool. De repente pousou-o na mesinha ao lado, displicentemente, acendendo um cigarro.
                    Desireé quebrou o silêncio, enquanto ele parecia algo absorto, contemplando a fumaça.

_Quero que você ouça isso. Coisa genuína, diretamente da Europa.

                     Ela lhe estendia a capa do CD enquanto inseria o pequeno objeto circular no aparelho. Logo a música algo exótica encheu o ambiente e havia um traço hipnótico incrivelmente envolvente naquele som.
                     Desireé sentou-se ao lado dele. Sorveu com devoção a vodka. Sentiu que as paredes do quarto flutuavam. Os padrões complicados da sua saia dançavam sozinhos perante o seu olhar enevoado.
                     Tudo similava uma grande loucura. Porque ela não podia ter Maria Rita? Porque Maria Rita tinha que virar uma mulher gorda, medíocre, com seus dois ou três filhos, seu orçamento de fome em uma casa esfumaçada? Teve a absurda vontade de perguntar isso ao poeta. Mas ele apenas a olhava, sorrindo, aprovando sem dúvida a qualidade dos músicos.
                     Um calor se espalhava nela àquele sorriso.
                      Era também uma mulher. Conhecia o sexo, mas não sabia o que era o amor. Seria aquilo mesmo que sentia por Maria Rita? Perguntava-se às vezes se a palavra amor encerraria algo mais do que aquilo que se subsumia à expressão “fazer amor” – o desejo puro e simples. Conhecia também os homens. Haveria algo mais para conhecer, haveria então isso – o que quer que fosse – o amor?
                    Então quando se deu conta estavam muito próximos. Ele estava sério. Desireé enlaçou-o com os braços, pousando os lábios em sua boca. A música quente e excitante era agora uma batida suave, prolongada. Ela teve medo de que ele a fosse recusar... Mas ele se deixou levar.
                     Algum tempo depois a música cessou. Desireé abriu os olhos e encontrou o semblante do poeta, seu olhar misterioso, indecifrável.
                    Havia no entanto agora alguma coisa nova ali, uma mensagem só para ela, sim, ela sabia. Havia feito dele – um homem.

                                                                                                                                          

   V

                                                                                                                                       ...
                 

                    Isso, agora ela, novamente o sol, na dos patins. O mesmo ritual, passar pela sala, mãe lendo, Liége idem, a avó eternizada na leitura das duas e quanto à Fátima, isso, apenas esgueirar-se e passar por ali sem ser notada, isto é, se...

_Fátima!

                Parou no meio da sala. Os patins na mão. Olhando para o ar à frente.

_Fátima, quero falar com você.

                Olhou de soslaio para Liége. Percebeu que a irmã escondia o riso. “Aí vem coisa”, pensou.

_Senta aqui, Fátima. – A mãe apontava a cadeira ao seu lado. Estava como sempre instalada à ampla mesa de refeições, agora utilizada como um instrumento de trabalho. Os papéis e documentos da mãe, dispostos com certo método à sua frente, causavam-lhe uma espécie de frêmito, uma espécie de repulsa. Detestava papéis de toda e qualquer espécie.

_Você já fez sua inscrição para a veterinária?

           “Para a veterinária...” , repetiu mentalmente as palavras da mãe. Logo vislumbrou o próprio futuro, a toda hora a mãe repetindo aquela expressão – e aquilo pertenceria à mãe- “a veterinária”, enquanto ela se preenchia com papéis e pastas, exatamente como a mãe.
             Sentiu um suor pegajoso e frio aflorar-lhe às mãos. Quase tonta respondeu que sim.
             Sim, o fizera mas não pensava muito nisso, era algo que devia ser feito, apenas isso. Isso. Agora podia responder que sim. No entanto não era isso justamente o que a mãe queria?

_Então – prosseguiu a mãe _Porque você não está estudando? Aonde está indo agora, com estes patins?

                 Ela abriu a boca para dizer algo em resposta. Não encontrando o que quer que fosse apropriado, virou o rosto, atingindo em cheio o olhar na expressão na face da irmã. Liége já não procurava disfarçar o interesse e acompanhava abertamente o desenrolar da cena. Fátima voltou-se indignada para a mãe.
            Deixou-se dominar pela ira. Levantou-se como que na explosão da fúria, perdera a consciência de si mesma, da mãe, da sala. Gritava, agora.
            Ouvia apenas a própria voz bradando, como nas outras ocasiões em que aquele tipo de transe descontrolado lhe sucedera, mas era como se outra pessoa estivesse emitindo os gritos, algo nela era tão somente a observação. “Não me enche! Eu não quero saber dessa droga! Vai pro inferno, entendeu? Pro inferno!” Estava sobre o corpo atônito da irmã, tentando esmurrá-la. Mas Liége desviou-se, ágil, saindo apressadamente da sala.
            Liége ouvia o ruído de móveis que, sendo lançados desordenadamente para todos os lados por Fátima, caíam com sons estranhos, rolando pela sala. Enquanto a mãe procurava em vão conter a irmã, Liége alcançou seu quarto buscando através do telefone o auxílio do pai.
             O final da tarde escoou-se através das cortinas e Fátima, sedada por um comprimido mas não completamente inconsciente, sentia como se a passagem do tempo, toda a liturgia da transformação do dia em noite, estivesse se processando no interior dos seus sentidos. A mente recusava-se a admitir a realidade, o ser concreto das coisas, o encadeamento de causas e efeitos. A própria identidade parecia ter se fundido ao puro perpassar da luz do sol esmaecendo-se, enquanto o resíduo dos fatos antecedentes – ela, a mãe, o futuro- tudo estava submetido ao crescimento da noite se instalando sobre o mundo assim como a tinta se espalha na água dentro de um copo.
            O pai esperou para vir falar-lhe. O fato é que o Dr. Giovanni – ortopedista renomado – estivera simultaneamente aguardando que ela despertasse da narcose do calmante e sustentando acalorada discussão com a própria esposa, Exma. Sra. Marcela Dutra, orientadora pedagógica do “Estabelecimento de Ensino Sociedade Anônima”e professora de inglês do “Instituto Ltda. Me.”
             O resultado viera ele, feliz e bonachão, comunicar à filha.

_Oi, gatinha – Ele repetia o jeito carinhoso de falar com ela, o mesmo desde que Fátima se entendia por gente. Em meio ao seu misto de estupor e mágoa, ela sorriu.

_Tudo isso por causa de uns simples bichinhos? – Evidentemente ele se referia ao ofício do veterinário e Fátima se retraiu pensando no que ele poderia estar querendo dizer. Mas o pai continuou ponderado, gentil:

_Olha, gatinha, isso não é assim tão mau, entende? Se você não gosta, pode fazer outra coisa, qualquer coisa...

             Ela sentiu as lágrimas rolando pelas faces. O problema era justamente esse, ela não conseguia pensar em fazer nada – nada que compreendesse papéis e livros,escrita e decoreba, sala de aula, perguntas e respostas... Como dizer-lhe? Como explicar-lhe a repulsa que a fazia temer ante a possibilidade de ter que crescer e enfrentar o único caminho, a faculdade...
              Até ali cumprira ordens. “Estudava”, colava sempre o mais possível, curtia todas no colégio. No entanto ser veterinária não pararia só nas provas. Seria preciso estudar sempre, ela pensava.

_Não gosto de estudar. Médico estuda o tempo todo.

            Ela respondeu. Havia também, poderia parecer, um tom de queixa por ele estar sempre ocupado, o médico de sucesso que estava ora atendendo seus clientes, ora fechado em seu gabinete de estudos inteirando-se das novas técnicas e descobertas no seu campo. Não sabia porém se ele teria podido compreender o verdadeiro alcance do que ela queria revelar.
           Havia sido um segredo até então. O fato é que ela sempre conseguia passar de ano à custa de embromação. Algumas matérias eram totalmente coláveis, outras dependiam apenas de ouvir uma hora ou outra o que a professora dizia. Mas estudar, como as amigas faziam, pegar os livros, etc. era o objeto da sua fobia - sim, verdadeiramente, fobia.
           Mas, tendo ido até que ponto a compreensão dele sobre o que ela dizia, isso ela não sabia, ele respondeu-lhe com uma tal conveniência que a surpreendeu.

_Então não precisa você ser médica, nem dos bichinhos, - O pai ainda conservava o tom meio infantil ao falar com ela.

_Mas qualquer coisa precisa estudar sempre!

          Ela antepôs com um certo desespero. Ele riu:

_Não é assim, gatinha. Por exemplo, você pode fazer Educação Física, já pensou?

                Uma luz no fim do túnel parecia ter assomado para ela:

_Educação Física?

                 Estava resolvida a questão. Mas e a prova? E o vestibular?

_Ora, não se preocupe...Em alguns cursos particulares, basta se inscrever...

                 Mas porque a mãe nunca fora capaz de entender uma coisa assim, tão simples? Fátima saltou da cama, estalando um ruidoso beijo na face madura do pai.


                                                                                                                                ...

              
                  Sexta-feira, saindo da escola. A bolsa no ombro. Ana nem precisa esperar muito. Logo o pai aparece, dirigindo o carro que estaciona dócil, à sua frente. Ela beija de leve a face de Fernando.
                  O encontro estivera combinado desde há alguns dias. Ela havia esperado então, tentando descobrir por trás de suas feições, em casa, o que poderia querer dizer aquela solicitação dele, mas continuava ansiosa, sem saber.
               Talvez por isso sentisse aquela impossibilidade em falar agora, em sequer perguntar afinal no que é que tudo aquilo lhe importava. Ou mesmo em demonstrar que sentia-se ao menos no direito de saber, assim como a mãe, o que significava tantas ausências, a viagem só com o irmão, para o sítio, que parecia a custo poder ser imputada apenas à sua ida à festa de Desireé.
               Parecia-lhe tão manifesto que o comportamento do pai estava a implicar uma justificativa quanto lhe parecia anteposta por si mesma a estranheza da reiterada exigência dele em mantê-la ligada ao sítio do avô.
              Agora o rádio do carro despejava suas notícias. Seguiu-se uma música leve, juvenil como ela mesma, naquele dia que deveria ser assim como os outros, tranqüilo e fácil. Mas as perguntas sem resposta criavam um certo vácuo ao redor da paisagem como se as coisas precisassem mais do que até ali lhes fora dado para existir.
            Fernando olhou-a como se verificasse nela se tudo estava em ordem. Instintivamente ela reparou a própria cintura, em seguida endereçando ao pai uma expressão marota como a provocar: “Viu? Estou usando o cinto”!
            Era notória a tensão na face do pai.
            Seus cabelos agrisalhavam-se a olhos vistos, principalmente nas têmporas, conferindo um ar particularmente cansado ao rosto moreno. Não obstante continuar achando o pai bonito, o que sempre lhe fora um motivo de orgulho, Ana agora inquietava-se um pouco por ele, por sua velhice anunciada nas rugas novas ao redor dos olhos e no vinco estático a sulcar-lhe o queixo. Tudo isso somado à inquietação causada por toda aquela atitude insólita que ele vinha desenvolvendo ultimamente levou-a a um sentimento de distância, de abandono. O silêncio crescia entre eles.
            Desde a sua entrada no carro, descontando as observações de praxe, as meras saudações iniciais, ele se mantinha calado, como que atento ao tráfego. No entanto ele costumava manter uma feição expansiva no seu jeito de guiar. Pensou então que o comedimento, a reserva das maneiras do pai, pareciam bem figurar o indefinível vazio que tanto a incomodava.
            Como se aquilo mesmo que devia ser tão familiar – estar ali no carro ao lado do pai, onde estivera tantas vezes por toda a sua vida até então, agora lhe parecesse incomum, insólito, uma exceção no meio do que pela janela Ana observava ser o ritmo absolutamente natural das coisas do mundo.
              Ele puxou o isqueiro do painel acendendo um cigarro, estendendo-lhe o maço em um oferecimento. Aquele gesto teve o condão de uma reaproximação. Compartilhando o cigarro pareciam por um momento mais íntimos, pai e filha. Mas algo nela se mantinha à parte da imagem exterior daquela intimidade. E logo depois Fernando estacionava o carro defronte a área reservada do restaurante.
              Ana não pôde deixar de sentir um ímpeto agradável ao deixar o automóvel no estacionamento e seguir ao lado do pai, uma bonita figura de homem, para o restaurante que ele sabia ser do seu agrado. Por um momento as dúvidas se dispersaram e ela era a mesma menininha indo almoçar no restaurante com o pai. Ele sorriu comentando sobre o fato dela estar mesmo parecendo uma garotinha naquele uniforme. Mas logo gracejou “Que nada! Vão é pensar que você é minha namoradinha...” e enlaçou o braço dela como a desafiar as aparências. Aquele era o pai de sempre, brincalhão, à vontade, com quem ela se sentia tão segura...
             Ã refeição porém, novamente retornava o clima que marcava a tensão familiar da época mais recente. O lugar era arrumado de tal modo que não havia pressa no atendimento nem quanto à permanência dos fregueses.
            Poderiam assim conversar à vontade e ao que parecia era mesmo esta a intenção do pai. No entanto somente à sobremesa ele se dispôs a entrar no assunto, por assim dizer.

_Ana, você sabe que eu tenho muita confiança em você. E é por isso que eu venho preparando o momento em que você, apesar da pouca idade, praticamente dezoito anos, vai assumir por completo a direção dos negócios no sítio.

            Ela sentiu novamente, agora com muita força, o aperto fechando-se em seu estômago como se fosse uma invisível mão a tapar-lhe a boca. Mas também uma força nova, que vinha talvez do seu amor por Joseph e da vontade imperiosa de não se afastar dele, fez com que ela sacudisse a cabeça como que para se libertar do constrangimento, do silêncio:

_Mas uma coisa não devia ter que resultar na outra, pai. Você confiar é uma coisa, mas será que você perguntou se eu quero isso?

               Fernando devolveu-lhe um olhar calmo, determinado. Uma força inamovível parecia expressar-se ali.

_Não se trata do querer, Ana, mas do dever.

              Ele respirou profundamente como que preparando-a para uma longa explicação.

_Eu e sua mãe estamos nos divorciando – Anunciou, com voz neutra. _Quanto a mim, vou morar em outro país. Você e Sérgio ficarão com sua mãe, é claro, e continua sendo minha obrigação zelar por vocês. Mas pelo que o juiz poderá determinar como debitável dos meus ganhos, o padrão de vocês ficaria sem comparação com o que é agora...

_Pai...- Ana interrompeu-o francamente. _Você está me dizendo que vai se separar da mamãe... que vai embora para sempre?

            O tom fraco de sua voz, os olhos turvados pelas lágrimas, nada poderia traduzir-lhe mais claramente o quanto ela estava chocada, ferida. Ele parecia ter previsto tudo, calculado cada milímetro da sua reação possível.

            Estendeu-lhe o lenço, esperando que ela se acalmasse. Sabia que ela se preocupava com as aparências, que logo se controlaria por estar em um lugar público.

_Ana, é preciso que você encare as coisas com maturidade, sem dramas, por favor. Não vamos deixar de nos ver, nas férias de Sérgio, mas agora a questão a resolver não é essa.

             Ele falava baixo, reconduzindo-a ao presente, ao local, ao auto controle. Era um passo difícil, uma jogada arriscada, mas ele sabia que ela iria reagir à altura pois conhecia-lhe bem a índole. Com efeito, Ana soube se recompor.
           Aquela força nova havia criado um equilíbrio estranho. A revolta nela equiparava-se à frieza revelada pela atitude dele. Sabê-lo tão capaz de não se importar levava-a a quase não se importar também.

_Assim, o negócio de laticínios servirá para mantê-los no mesmo padrão em que vivem agora, apenas, é claro, tendo que ir morar no sítio...

_Mas e a mamãe? Porque ela não pode ficar com o negócio, é muito mais lógico ficar por conta dela!

           Pensar na mãe, em sua frágil solidão, quase pusera tudo a perder do seu auto controle, mas Ana estava por demais interessada em escapar. Se a mãe pudesse assumir os negócios quem sabe ela viesse a se hospedar com Fátima... Pensava febrilmente, tentando encontrar um modo de não se afastar de Joseph. Mas o pai semi-sorria, algo triste, algo decepcionado.

_Não, ela não tem condições de assumir.

_Mas é muito mais razoável que ela assuma, eu sou muito nova!

_Você já tem bastante idade, tem sido preparada para isso, e depois tenho toda confiança no administrador. Você só precisará supervisionar, assinar as contas... O resto é com ele. E se você pegar o jeito logo vai querer expansão, ampliação de horizontes, um negócio seu, entende? Olha, é um bom futuro...

_Mas e a minha carreira, a minha opção? Eu quero se estilista, não comerciante!

_Industrial, Ana, industrial. Não dá para comparar, minha filha, o negócio é ótimo, você vai ver. Eu não lhe diria se não fosse verdade. Seria muito improvável que você se saísse tão bem como estilista do que vai poder, como empresária.

                A expressão dele era agora definitiva. A conversa chegara ao seu termo. Não havia como denegar aquilo que lhe era imposto como um dever para consigo mesma, a mãe, o irmão. Ela curvou a cabeça. Ao entrar novamente no carro do pai sentia-se subtraída do seu próprio ser. Ele a deixou em frente ao prédio em que moravam e partiu, para o escritório, sabe lá para onde...

                                                                                                                                  ...
            
                 Quanto a ele, Fernando jamais se sentira tão bem. Uma força jovial parecia ter renascido em seu peito, uma alegria exuberante, desconhecida, lhe era acessível agora e ele não quis se perguntar sobre a sua legitimidade.
                 Iria por certo à casa de Sônia. As coisas chegavam à resolução que ele havia planejado e desejado. Não havia nenhum arrependimento, nada que pudesse mover a certeza daquela decisão. A viagem, a mudança para Nova York...Sua vida com Sônia estava ancorada em um porto seguro do mesmo modo que a família que ele deixava, agora que sentia que não mais lhe pertencia, que fora como um peso tão constrangedor por esse tempo em que seu amor por Sônia crescia como o clamor por uma vida nova, uma liberdade efetiva.
                   Havia amado a esposa, havia pertencido à família, mas seu coração mudara. E a liberdade que tanto quisera agora vinha a ele, ao preço de suas próprias deliberações como ordenação das coisas, cada uma conforme a sua possibilidade.
                  Não havia como expressar a essência da maravilhosa sensação que ele experimentava, como se inspirasse a música embriagante de um sonho novo, como se estivesse nascendo... Ã vida, à luz...Ao amor...

                                                                                                                                                ...
          
             Ana o viu afastar-se, parada ali, defronte o edifício, atônita. Lembrava pedaços daquela conversa que mudara tudo. “Não vamos deixar de nos ver”... “Você e Sérgio poderão me visitar”... Enquanto subia as escadas com as lágrimas rolando pelas faces era só nisso que pensava. Quando o veria novamente? Ele nem mesmo dissera para onde estava indo...
             Ã parte a revolta pelo abandono a manifesta indiferença dele quanto aos sentimentos dela, da mãe, do irmão, era seu pai, ela o amava. Sentia a dor da separação e não estava preparada para aceitar aquilo.
               Deteve-se diante da porta, os livros na bolsa da escola, o coração descompassado.
               Como chegar daquele jeito, com o rosto desfeito em lágrimas, incapaz de dizer uma só palavra? Procurou um lenço, voltou-se à porta lateral, entrando pela cozinha e não pela sala, refugiando-se no banheiro da área de serviço.
                Ali ela banhou o rosto naquela água fresca e pura que parecia querer lhe transmitir coragem e ânimo. Era preciso enfrentar a luta, não desistir. Assim guarnecida com uma força gerada na resistência da vontade, encaminhou-se à sala onde esperava encontrar a mãe.
                 Passava das três horas e como de hábito ela deveria estar com Sérgio, auxiliando o dever de casa do menino, assim como costumava fazer com ela própria quando ainda era uma criança cursando o seu primeiro grau.
              Com efeito, ali estavam, a mãe e o irmão. Eles ergueram o olhar em sua direção, sorrindo, cumprimentando:

_O que foi que houve, Ana? Você está com um jeito diferente. Algum problema na escola?

            Marlene perguntou, percebendo a contrariedade que ela havia tentado disfarçar de um modo ou outro.
             A mãe estava sentada com o irmão no tapete, ambos apoiando livros e materiais de escola na mesa de centro ampla, com tampa de vidro, estruturada em metal. A luz da janela tornava bastante cômodo aquele arranjo pois incidia sem obstáculos sobre eles. Enquanto a mãe se dirigia a ela nestes termos, o irmão recostava a cabecinha sobre as mãos com os cotovelos apoiados na mesa, um lápis sobressaindo dos seus dedos fechados. O pequeno parecia preocupado. Esperou que ela respondesse “Tudo bem mãe, mas eu preciso falar com você, agora”, para anunciar:

_Ana, vou ter a maior prova na segunda! Só hoje que a professora avisou, vê se pode!

              Marlene voltou o olhar ao filho não podendo deixar de sorrir ante a expressão comovente do garoto.

_Não se preocupe, eu já te falei, vai dar tudo certo... – E então olhou novamente para Ana.

_Aninha, agora estou ocupada com o seu irmão... É urgente?

                “Claro! É terrível!”, queria ela proclamar, mas sabia que aquele não deveria ser o modo correto de abordar a questão e então limitou-se a responder:

_É... É muito importante. Mas eu posso esperar você resolver o problema com o Sérgio.

Neste momento ele sorriu à irmã, constatando meio brincalhão:

_Pois é, desta vez vou ter que dar duro nos estudos!

              Ela devolveu-lhe o sorriso, não isento porém de um certo ar melancólico que não passou despercebido à mãe.
              Marlene sabia do almoço de Fernando e Ana, mas havia sido a filha, não o marido que lhe anunciara isso e agora pelo que podia deduzir o resultado do encontro trazia algo de preocupante. Inquieta, mas controlando-se para não alertar o filho, Marlene solicitou novamente a Ana que aguardasse para poderem conversar dali a pouco.
               Quase uma hora depois, deixando Sérgio mais confiante em relação à prova, ela foi ao encontro da filha.
               Ana estava em seu quarto. Havia chorado mais. Tomou um banho e vestiu algo confortável mas os vestígios das lágrimas estavam muito evidentes em seu rosto enquanto ela fumava um cigarro, reclinada em uma poltrona esperando por Marlene.
              A mãe entrou e constatou, pelas marcas em seu rosto, que havia algo de grave, talvez de definitivo, naquela conversa.
             Assim, sem nada perguntar, fechou a porta, sentando-se à beira da cama, encarando-a.

_Por que você não me contou antes? Por que não me disse nada?

              Marlene, surpresa, deixou-se ficar parada, entre as coisas da filha. Um sentimento final lhe toldava as palavras. Sabia que o momento havia chegado, o qual ela temia, mas que de algum modo a paixão da espera tornava bem-vindo, pois então, agora, estava ali. Apenas um detalhe a confundia.
             O fato de ser Ana a lhe estar revelando algo que deveria ter sido exposto de outro modo, em uma outra cena. O quarto pareceu-lhe subitamente muito pequeno. Mudou de posição, como a querer assim encarar os fatos. De pé, olhando a moça sentada imóvel à poltrona, deixou que a expressão puramente interrogativa lhe apelasse ao íntimo. Ana, compreendendo a face da mãe tornou-se porém algo sarcástica, a ironia buscando compensar o amargor.

_Ah, Não! Não vai me dizer que você não sabe de nada...

                Nesse instante, pressionada pelo que considerava agora como uma suprema injustiça contra si mesma, Marlene recuperava o domínio das palavras:

_Não sabe do quê, Ana? Eu preciso que você me diga claramente o que foi que aconteceu nesse seu encontro com o seu pai.

               Ela tentava conter a voz em um tom neutro, educado, como era o seu hábito, principalmente ao se dirigir aos filhos. Agora porém não podia evitar que um certo tremor lhe traísse o nervosismo. Mas Ana estava emocionada demais para reparar nisso. Na verdade paradoxalmente sentia mesclar-se ao cuidado e preocupação com a mãe, desde que soubera da deserção do pai, e que tanto contribuíra para o seu pesar, com uma certa sensação de desprezo, de agressividade, agora que a mãe estava ali à sua frente demonstrando uma ignorância que lhe parecia muito indevida.

_Como assim? Você não sabe que está se divorciando?

                Marlene não podia acreditar no que estava ouvindo.

_Eu? Você está louca?

              Nunca antes havia falado assim com Ana, nunca havia se descontrolado tanto diante “das crianças”. Porém era-lhe impossível agir de outro modo.
               Ana compreendeu que era necessário ter cuidado, que a mãe precisava do seu cuidado. De repente sentiu-se cansada, à parte. Parecia estar envolvida com problemas que não eram os seus, com uma coisa que era deles e que simplesmente havia sido solto em sua mão como algo abandonado, sem sentido.
             A gratuidade das coisas subira à superfície, o papá - mamã- e -eu fora desfeito, era um arranjo, uma tolice.
              Tudo assumira um novo rumo. A imagem de Joseph em seu íntimo sustentava a única intenção sobrevivente ao naufrágio do casamento no mar da mentira. Era necessário escapar, para ele, para o seu amor.
               Buscou as palavras mais adequadas agora, animada por aquele objetivo.

_Mãe, desculpe, eu não sabia que você não estava sabendo, ele... Mãe, você tem certeza que ele não comentou nada..?

                 Por um instante o plano de ser objetiva e metódica para assim escapar ao sítio e a todo um destino imposto foi suplantado pelo sentimento puro da incredibilidade, da inaceitabilidade daquilo: a mãe ter que tomar conhecimento por ela -por Ana- que o pai estava indo embora!
                Marlene neste ínterim, fizera todo o possível para se controlar, para manter a imagem equilibrada diante da filha. Tudo o que havia era a tristeza. O abalo havia passado. De certa forma havia algum alívio porque a incerteza, a dúvida, havia sido removida. Estava só consigo mesma. Haveria de se pegar nas mãos, de se proteger. Haveria de aplacar as feridas, de voltar ao seu ser mais íntimo, de se cuidar...

_Ana... Vamos deixar de rodeios, está bem? Vamos falar claramente. O que o seu pai disse a você?

_Que vocês estão se divorciando. –Ela respondeu prontamente. _Ele vai morar em outro país e nós vamos para o sítio. Ele quer que eu assuma agora os negócios, isto é, daqui a dois meses, quando eu completo o segundo grau, entendeu?

              É claro que ela entendera, nada poderia ser mais explícito. Porém o olhar vago, a expressão distante da mãe a fizeram duvidar por um pouco, se a mãe sequer ouvia o que ela estava dizendo. Repentinamente puxou-a pela manga da blusa. Ela tinha que ouvir, era absolutamente necessário que entendesse:

_Mãe, escuta por favor! Eu não quero, eu não posso ir para o sítio de jeito nenhum – não! Você tem que falar com ele, convencer, você tem que conversar com o papai...

                 Marlene desvencilhou-se com jeito, interrompendo-a:

_Convencer do quê, Ana?Você está pensando que eu vou pedir ou implorar para ele não ir?

_Não, não é isso. O que eu quero é que você assuma o controle do negócio de laticínios, não eu!

                 As duas se fitaram por um longo momento, enfrentando-se. A tensão chegara ao auge. A constatação recíproca do equívoco manifesto entre aquilo que lhes tocava, que lhes importava, tornava mais pesada a verdade a encarar.
                Era óbvio que Marlene sofria com a separação, mas Ana se preocupava com outra coisa, com Joseph. O confronto as atingia diretamente pois a filha estava na realidade a cobrar-lhe uma posição e isto a ameaçava como se algo que devesse estar oculto estivesse agora à luz.
                A tarde caía. Por trás das cortinas semicerradas o crepúsculo tornava as coisas meio líquidas no breve instante da passagem para o anoitecer. Por entre uma faixa vertical da janela nua, não recoberta pelas cortinas um pouco afastadas, detalhes daquele azul intenso podiam ser vistos e impunha-se aos sentidos como uma transformação vaporosa e lenta. A penumbra avançava e Marlene quase sem pensar acendeu a luz com um gesto automático. Ana continuava na poltrona, mas abandonara a posição inicial para estar agora sustentando o torso ansiosamente curvado para a frente, o rosto assim assumindo um contorno proeminente, destacado. Parecia impor-se a tudo mais no ambiente e forçava a mãe a encará-lo. Marlene sentou-se novamente à borda da cama.

_Mas me diga como, Ana. Eu não sei nada sobre negócios. Você está fazendo o segundo grau profissionalizante em contabilidade, tem estado praticamente todo o final de semana recebendo orientação do seu pai. Eu pensei que tudo se resumiria a isso, você continuar a freqüentar o sítio quinzenalmente para supervisionar as coisas sem que ele precisasse se preocupar. Pensei que era só isso...

             Ana parecia agora francamente agressiva.

_O quê?! Você nunca percebeu nada? Não é possível, um homem está indo embora e a mulher acha que “é só isso”?

           Marlene torcia as mãos suadas em seu colo como se dali pudesse retirar a expressão correta que lhe aplacasse a fúria mas Ana não mais se conteria por nada. Levantou-se, brusca:

_E eu também não quero saber disso agora. O que eu quero é que você tome a frente, fique com o sítio, enfrente o papai e assuma os negócios. Quem sabe assim ele sai, pelo menos, te admirando um pouco...

          O olhar de Marlene se encheu de lágrimas, magoado. A filha lhe ferira duplamente, tanto pelo seu desinteresse por ela, pelo seu sofrimento, pela sua pessoa, quanto pelo que ousava revelar do desprezo do pai.
          Na verdade era aquilo que estivera todo o tempo entre ambas, a atribuição da culpa. E não só entre elas mas impregnando tudo, a sua vida familiar, o seu modo de ser, o seu sentimento de estar fora do tempo, a indiferença de Fernando, a ruptura...
         O fato mesmo dele não ter se dignado a anunciar-lhe a verdade do divórcio, deixando que fosse Ana a lhe dizer.
           Era aquilo lançado contra ela, como se fosse a culpada – por ser submissa, por ser dócil, por não “assumir”, não “enfrentar”... Mas o quê? O que havia a fazer que ela não houvesse feito? Havia algo de que não dispunham em todo o –meticulosamente limpo e bem arrumado – lar?
          Não importava, não era isso. Ela precisava apenas daquilo que não tinha, agressividade, brutalidade. Ela deveria ter sido apenas aquilo que não era –impositiva, dura. E por ser apenas aquilo a que a haviam destinado, uma esposa, uma boa esposa, agora não servia mais por que... Por quê? Por que não servia mais?
           Era essa pergunta que deixava uma lacuna como resposta, que a fazia chorar agora, explodindo em seu peito a dor da ausência de uma resposta precisa, a certeza também de que ninguém viria lhe dizer, de que ninguém se preocupava com o que ela não sabia. Nem Ana. Muito menos Ana.
            Saiu então do quarto, abrupta, seguida pela filha que estava disposta a tudo como se a mãe fosse uma espécie de caça a ser agarrada agora ou nunca. Entrou no banheiro para lavar o rosto. Ã porta, Ana lhe falava, insistindo, enquanto a observava enxugando-se na toalha:

          _Mãe você não pode deixar que ele me obrigue! Não é justo! Eu só tenho dezoito anos! Eu tenho o direito de resolver o que eu quero da minha vida!

             Ela falava alto. Logo Sérgio apareceu também no vão da porta, assustado. Felizmente Marlene já estava recomposta e ele não percebeu que ela havia estado  em prantos. Olhou a filha severamente, como a fazer com que se calasse.

_O que foi, Ana? Tudo bem, mãe?

            O pequeno havia sido atraído pela voz de Ana.
            Não era tão incomum que mãe e filha discutissem, às vezes por bobagens, quase sempre por causa da hora de Ana voltar para casa. Mas ele sempre se sobressaltava e nestas ocasiões a mãe o acalmava, o que costumava também desviar a atenção de Ana que voltava a procurar se controlar. Agora, embora o motivo fosse inteiramente outro as coisas não se passavam de modo diverso.
            A mãe pousou os braços ao redor dos seus ombros, gentilmente conduzindo-o para fora do banheiro, sendo porém seguida pela filha que embora silenciosa, instava por uma decisão sua.
            Marlene pensou que se tinha que ser como eles queriam bem poderia começar por ali mesma e mostrar que era capaz de ser bastante forte com a própria filha. Mas à vista de Sérgio e ao som da própria voz, que como de hábito acalmava o menino instando-o a voltar ao quarto e à Tv que permanecia ligada, pareceu percorrer o próprio íntimo com uma espécie de percepção interna... E viu que estaria se traindo se viesse a “se vulgarizar” agora...
          Ou era tudo isso só uma máscara que lhe permitia continuar embalando o sonho da submissão a Fernando, ao casamento e a tudo que ela mesma devia ser? Sem saber, quase sem se importar, limitou-se a ceder..

_Ana – voltou-se à filha, agora ambas frente à frente na sala, enquanto Sérgio encaminhava-se ao quarto: _Está bem, Ana. Eu vou falar com o seu pai.

            Neste momento para ela o que importava era manter a atitude que havia sido a sua até então: equilibrar as coisas, fazer a vontade de Ana, de Sérgio, de Fernando... Ainda que isso implicasse agora paradoxalmente em se antepor ao que ele mesmo já havia disposto quanto ao sítio e à filha.. E quanto ao mais, quem sabe Fernando não lhe viesse mesmo a admirar por isso?
             Conversaria com ele, de qualquer modo. Era um excelente pretexto.
             Porque ela não poderia nunca simplesmente interpelá-lo e perguntar, “Como? Como é que você pode ter coragem de usar a própria filha para me notificar de um divórcio?”
            Oh! Não, ela jamais o faria.


                                                                                                                             ...

                     As ruas emitiam um brilho gasoso, gelado, como se as coisas houvessem se revestido de um invólucro plástico de puro brilho. Uma sensação eufórica desprendia-se do rastro luminoso dos automóveis. A noite guardava todas as promessas, as mais delirantes, as mais coloridas e desejadas, miríades de promessas em seu halo misterioso e constelado.
                  Francisco caminhava lado a lado com Márcia, de mãos dadas.
                  Ele se sentia inebriado perante a vastidão insondável que o frio impedia a cidade de ocultar.
                A maravilha da noite mergulhada em pleno cosmos misturava-se porém, a uma impressão de quietude, de familiaridade, a qual parecia provir das paredes vistosas ornadas por vitrines iluminadas, dos letreiros em sua estonteante variedade, das pessoas inúmeras que conferiam um ar festivo às ruas.

_Francisco, ei, psiu, Fran-cis-co! Está me ouvindo?

                Ainda mergulhado naquele êxtase suprasensual ele se voltou para a namorada, gentil, generoso, ao mesmo tempo englobando-a na extensão perfeitamente elástica da continuidade perceptível das coisas e querendo comunicar-lhe, ofertar-lhe algo do inefável poder da noite que - ele sentia – havia por pura graça consentido em tocar-lhe, vibrando-lhe um átimo de sua infindável corrente de ternura.
            Oh! Márcia, esta mesma ternura da noite – não teria ela viajado incontáveis espaços através da lua, das estrelas, vindo...Vindo de onde? Talvez do lugar de onde nós mesmos, todos nós, viemos...

_Pôxa, Francisco, não dá para conversar desse jeito, você não presta atenção em nada!

            Mas como explicar-lhe a absoluta atenção que ele dedicava, desde que voltou-lhe o olhar, ao delicioso ângulo do seu perfil, ao jogo mágico do seu olhar por entre as sobrancelhas delineadas, e o quanto contemplava a sua face com verdadeira reverência...
           Ou então, não, não todos teriam vindo da região geratriz da ternura, mas ele, apenas ele, o solitário viajante interestelar?

_Eu já te perguntei umas trezentas vezes, onde é que estamos indo, dá para você fazer o favorzinho de responder?

           Márcia estava cansada, sentindo-se vazia, queixosa.
           O dia todo ela estivera estudando, aquele sábado. Primeiro foram os exercícios ao piano. A prova do conservatório estava marcada para dali a quinze dias. Não que pessoalmente se importasse. Mas o silêncio, se houvesse, alertaria os pais e era necessário que de nada desconfiassem. O que verdadeiramente lhe interessava era o vestibular, dali a dois meses. Assim, durante a tarde, estivera mergulhada nos livros.
           Seu plano era passar no conservatório e no vestibular, cursar apenas este último e anunciar isto à época de matricular-se na faculdade, se passasse. A prova do conservatório serviria para disfarçar o que lhe importava realmente, perante os pais, até que chegasse o momento de enfrentá-los, mas a tensão quanto ao resultado possível do vestibular, essa dúvida crucial, o segredo, o qual não estava acostumada a manter, a incerteza quanto ao impacto, se tudo desse certo, todas estas coisas a estavam extenuando.
             Gostaria de desabafar com Francisco, mas a atitude dele a irritava.
             Parecia andar sobre nuvens, sem ver nada, sem reparar nela, sem prestar atenção ao que ela dizia.
             Por hora nem ousaria falar dos seus problemas, queria apenas que ele a informassem onde iriam aquela noite por que estava preocupada com o dinheiro. Ele lhe havia assegurado que desta vez pagaria as despesas mas ela sabia que aquela não era a primeira vez que ele se encarregava disso para depois vir cobrá-la no meio do passeio porque “Não trouxera o suficiente” e “Não sabia que ia ser tão caro assim...”

_Calma aí, Márcia, que é isso, porque você está tão nervosa?

           O rosto dela parecia tão cerrado... Tão tenso... Era como se estivesse quebrando o ar em torno e ele queria só o seu silêncio cúmplice, amigo...

_Mas que coisa, Francisco, será que eu vou ter que perguntar de novo?

           Ele fez um esforço honesto para restabelecer a percepção ligeira que obtivera daquilo que ela lhe estava dizendo momentos antes. O fumo obnubilava a mesquinhez liberando a atenção para o amplo e vasto indômito do céu. Jesus, estavam aqui, sem saber de onde é que tinham vindo ou como ou porque, e aqui é o meio do céu como em qualquer outro espaço! “Não sente a criança que o céu é ilusão / crê que o não alcança quando o tem na mão”.
          Então ele riu, porque o verso de Bandeira, que ele havia lido no livro da escola, lhe voltara inteiro, como se fosse um rolo de linha que ele havia puxado por uma ponta, um fiapo entrelaçado no meio de tantos outros na trama emaranhada e aleatória da sua memória louca – louca por causa da noite nova, soberana, da noite onipresente... E lá ia ele de novo na viagem dos seus pensamentos, mas então ele sentiu que o ar quebrado lhe havia alcançado a fímbria do extenso e olhou para Márcia.
         Não, não adiantava ter puxado o rolo da linha mais preciosa e dourada, o que lhe era exigido pelos soldados de chumbo era sempre o mesmo – ele assim se referia a todos que à sua volta só queriam que ele funcionasse como um peão de corda – sempre o mesmo: o movimento mecânico de carregar o caminhão – ao invés dos seus passos suaves de dança; a resposta decorada dos exercícios escolares – ao invés de suas dúvidas sinceras ou dos poemas por eles mesmos; o que é que ela havia perguntado – ao invés do céu.

_Desculpe, Marcinha – procurou amenizar tudo com um sorriso _Eu não sei, não ouvi.

            Ela desprendeu-lhe a mão, deixando os braços penderem ao longo do corpo tenso, as pernas pisando o chão com dureza, quase com rancor. Avançava como se fosse um bloco de amargura e mágoa. De repente deu-se conta de que afinal era sábado e ela estava ali no centro passeando com o seu namorado, o qual ela amava... Então voltou-se a ele percebendo o rosto que exibia uma expressão tristonha e sonhadora, ele estava algo pálido, o cabelo alourado projetado em sua direção sob a luz de uma lâmpada de mercúrio que parecia realçar-lhe a confusão. Ela suspirou.

_Francisco, onde é que nós estamos indo?

           Buscou enunciar a pergunta em um tom neutro e comedido.
           Por um instante ele teria se deixado embalar pelos apelos daquela questão: Saberiam todos onde é que estamos todos indo?
           Mas reconcentrou-se, sóbrio, como que executando os gestos pequenos de uma pantomina.

_Ao “Porão”.

_Quê que é isso?

_É um lugar super maneiro, você vai ver.

           Ele garantiu, buscando segurar-lhe de novo a mão.
           Contudo, ele não a amava.
           A retinha ali porque ela era sólida, só, sem nenhum consolo. Ela o amava, era verdade, e ele retribuía com sua companhia a esse cuidado – porque os soldadinhos de chumbo por vezes são cuidadosos quando amam e ele tinha tanta pena deles, mesmo quando os detestava, mesmo quando gemia sob o látego de suas exigências cegas, seus comandos vazios.
            À frente a rua desembocava em outra avenida. Márcia queria protestar por terem que andar tanto.
           Mas preferiu não dizer nada desta vez em parte porque o sorriso dele a havia desarmado, em parte porque se pusera a calcular e recalcular mentalmente o montante que trazia na bolsa, para o caso de precisar, e abstraiu-se assim , procurando lembrar todos os punhados de moedas, notas e restos de troco que porventura poderiam ter parado em sua bolsa. Descobriu-se de repente junto a uma casa de aspecto mundano, maior do que as outras, o portão e as janelas enormes abertas, muito iluminada, em torno da qual havia um bando incoeso de jovens desligados, dispersos, ostentando todos os mesmo ar absorto ainda que entre alguns casais houvesse meio-sorrisos e olhares langorosos.
 
                                                                                                                           ( a revisar ) /este bloh está sendo impedido de ser postado: o trecho a revisar ocorre porque as postagens começaram a ser sabotadas a partir desse trecho, mas dentre as raras que estão se complentando, consta esse comunicado 

            Márcia e Francisco subiram uma pequena escada, adentrando o portão, que os levou a uma varanda na qual se destacava algo como um portal. Lá dentro a escuridão reinava, cedendo apenas o espaço do palco habilmente servido por spots estratégicos de luzes coloridas que de modo algum comprometiam-lhe a majestade.
           Ele suspirou profundamente, como um náufrago alcançando a terra firme, um marinheiro regressando finalmente ao lar. Quanto à Márcia, sentiu o coração principiar a bater descompassado, apreensivo, os sentidos agredidos pela fumaça que rescendia ao cheiro acre do fumo.
           Jovens agrupados formavam a platéia reverente de uma banda de metais pesados exibindo-se agora no palco. O virtuosismo dos músicos parecia atingir o íntimo de cada um mas não os corpos, que permaneciam encolhidos no chão liso do salão.
´          Era uma música cerebral, para uma sensibilidade desligada, apenas atenta às ondas do ritmo servidas aos pacotes de padrões complexos, de milhares de notas por segundo, um som que ligava a mente e o coração, a alma livre povoando espaços inéditos. Mas Márcia não estava preparada por uma base de fumo, nem por um conhecimento prévio dos rituais implícitos daquele tipo de espetáculo.
             Tudo parecia ser contrário ao que ela mesma sabia ser, cadeiras na sala, luzes de bom-tom, “concertos para a juventude”... Ou ao menos semblantes contactáveis...

Mas ali todos pareciam imersos na percepção de algum mundo alheio a ela.

Francisco abraçou-a subitamente. Arrebatado pela música ele se abandonava no corpo dela devorando-a com beijos selvagens e carícias ousadas. Agora que seus olhos haviam se acostumado à escuridão Márcia podia constatar que ninguém reparava no que acontecia pelos cantos onde outros casais se abraçavam do mesmo jeito. Aquele parecia ser mesmo o modo de se namorar por ali.

Mesmo assim o jeito dele a assustou. Sentia-se tão longe de seu próprio modo de ser, mas deixava-se levar, sem contudo deixar de perscrutar o ambiente, como a comprometer-se consigo mesma a estar de olhos abertos, bem consciente do que estava se passando ao seu redor, pois, pensava, em um lugar como aquele poder-se-ia esperar qualquer tipo de coisa... Mas o tempo escoava-se e nada ultrapassava aquele mesmo estar-todo-mundo-ali-no-escuro-ao-som-de-uma-banda-de-rock.

Então Francisco envolveu seu rosto com ambas as mãos. Forçou-a a encará-lo. Ela demorou a compreender que ele a estava chamando para fora do salão. Havia algumas cadeiras no pátio, dispostas ao acaso. Francisco olhou para ela, sério.

_Márcia, qual é? Você está procurando alguém, por acaso? Ou é o quê?

Ele falava só para ela mas Márcia sentia-se envergonhada como se todos em volta pudessem constatar que estavam brigando. Sentia-se ainda mais frágil por estar em um ambiente que era completamente dele, não seu, e era como se o namorado a estivesse expondo, despojando-a, sem mesmo ela entender qual era afinal o problema.

_Como assim, Francisco, o que é que houve?

Francisco parecia inteiramente entregue a um processo íntimo, desconectado da efetividade comum das pessoas, do âmbito partilhável do mundo, como se uma idéia fixa o estivesse retendo.

_Você comigo e olhando para todo mundo!

_Mas não é nada disso. Eu te amo! Eu te amo!

Não havia como explicar-lhe a desconfiança que a fazia atenta a tudo e a todos. O semblante impenetrável. O mutismo. Ele se levantou e trouxe cerveja. Ela deixou que um copo viesse às próprias mãos.

_Francisco... –Ele a fitava aborrecido, censurando-a com aquele olhar magoado, convulso.

_Francisco, por favor, acredite, eu não estava olhando para ninguém.

_Estava sim, claro que estava, tá pensando que eu sou otário?

Márcia sentia que mais um pouco estaria às lágrimas. Era como ser dilacerada frente a uma turba de desconhecidos.

Ele exibia agora uma introspecção completa em contraste com o tom cortante, incisivo das palavras. Estava ao seu lado como se não existisse.

_Fala comigo, por favor...

Francisco ausentara-se de todo ainda que permanecendo ali.

Ela não via alternativa a esperar que ele “retornasse”. Copo após copo ele bebia a cerveja. Claro, ela já havia conhecido outras ocasiões como aquela, com ele. Mas sempre parecia que nunca havia passado por nada tão traumático antes e não sabia como agir. Até que restava o silêncio e de repente ele sairia do transe sombrio. Ele se levantaria, estava se levantando agora. Voltaram de mãos dadas ao palco mas ele desviou-se da entrada principal encaminhando-se com ela a uma cantina que funcionava ali. Compartilharam uma porção de churrasco, batatas fritas, maionese. Depois estavam novamente aos beijos. Finalmente voltaram ao salão.

Mais tarde foi preciso mais cerveja. O dinheiro dele havia acabado e as contas ficavam a partir daí por conta de Márcia. Havia uma espécie de feira de artesanato em um dos cantos do pátio. Ele quis uma camiseta, “Depois te devolvo a grana, palavra!”, e ela pagou. Já madrugada ele resolveu que estava bem por aquela vez. Mas àquela hora seria necessário um táxi. Não poderia ela arcar com essa parte a bem do passeio - tão sensacional como um todo? Mas à saída, sem se dar conta, foram vistos por alguém.

A expressão do rapaz que observava atentamente o casal, que agora fazia correr o táxi, denotava imparcialidade, como se estivesse acostumado a esconder sob traços sóbrios o que lhe passava pela cabeça. O irmão de Márcia a reconhecera ao lado de Francisco.

Mas o irmão de Márcia sabia quem era Francisco; “Márcia? Aqui? Com aquele cara? Ah! Não... Isso não vai ficar assim não...”

              

VI-


 

A barra do dia apenas suspeitada por entre a bruma do alvorecer, na praia, fez com que Desireé percebesse a aproximação do sol. Deixou-se amparar suavemente pela areia.

Estava quase embriagada, eufórica. O poeta, Margô, Renato, Letícia, Felipe, todo mundo lhe parecia feliz, íntimo, como se compenetrassem a natureza mesma através da substância do amanhecer.

Então por um momento estiveram em silêncio. Muito devagar, quase imperceptível o cansaço chegava. Logo a claridade estava novamente por toda parte, onipresente. Era um domingo.

Os amigos queriam tomar o café da manhã em uma lanchonete.

Desireé encontrava-se no entanto em um estado particular de ânimo agora, algo como uma lassidão, um langor. Para ela a noite, em toda a sua imensidão misteriosa, havia se aninhado em seu ser como um único refúgio frente à eclosão da luz matinal. Por isso preferia ficar na areia, bem quieta, e o poeta concordou em fazer-lhe companhia enquanto o grupo combinava esperá-los na lanchonete para depois se reunirem ainda em casa de Margô.

Assim eles se viam novamente a sós. Estavam andando juntos, sempre com amigos, por aquela época, desde o encontro no quarto de Desireé.

_É um período mágico...

Ela murmurou, levemente. Entre todos os eventos, quando estavam a sós, sentia aquela liberdade na presença dele, como se pudesse fazer e dizer o que quisesse pois ele entenderia ou não julgaria mas estaria ali, apenas, com ela. No entanto não houvera nenhuma repetição àquele ato de amor, como naquele dia, em seu quarto, ouvindo música... E Desireé se perguntava por quê.
. É verdade que estava assim, tão pura, tão solta, que era como que impensável qualquer iniciativa. E ele mesmo jamais propusera coisa alguma, ela sabia, mesmo naquela única vez a iniciativa partira dela e por algum motivo parecia mesmo irrepetível. Não obstante, estavam sempre juntos vivendo aquele “período mágico”.

O poeta a ouviu murmurar, como em um transe e quase como que para si mesma, a frase, enquanto observava a aurora espraiar a sua luz.

Sentia que o momento era aquele, havia chegado. Mas não saberia explicar aquele sentimento ou a quê se ligava. Então percebeu que ela falava novamente, agora dirigindo-se explicitamente a ele.

_Poeta, o que é que você deseja assim, do fundo do coração, sabe, o que é que você realmente quer?

A voz soou tão nítida, tão clara... Ele sorriu. A resposta veio de dentro do seu ser.

_viajar... Quero chegar - lá!

Seu olhar apontou o mar, como que referindo-se à Europa. Há tanto tempo vinha sonhando com isso... Era como se os poemas estivessem à espera de um conhecimento que ele precisava encontrar nas estradas, algo que era mais do que uma questão de paisagens, era talvez a procura de sua própria alma.

Ele supunha que Desireé não pudesse compreendê-lo assim como um outro amigo seu, que amava uma mulher. Se a alma dele estava ali, o que poderia haver para ele – lá? Mesmo para Desireé as viagens eram coisas bastante banais. Mas ele... Ele sonhava chegar ao centro do seu universo cultural. Ele imaginava que um dia retornaria, cheio de uma experiência nova, uma sabedoria antiga... Ele descobriria coisas, seus poemas cresceriam como seus horizontes...

Mas é claro, falara aquilo assim, com muita convicção, porque confiava nela naquele instante o seu desejo mas jamais pensaria que pudesse soar como qualquer outra coisa além disto apenas e surpreendeu-se então, grandemente, com a resposta:

_Só isso? Tudo bem, é fácil arranjar.

Ele encarou-a enquanto ela retribuía o olhar com uma expressão cheia de decisão.

Na verdade ela quisera que a resposta dele fosse “o seu amor”. Mas desde que ele havia se pronunciado daquela forma algo nela se sentiu emancipado, em um momento novo. Não se tratava mais disto e sim... e sim do quê? Evidentemente daquele novo tempo que começava agora.

O poeta “já estava na Europa”, Desireé conhecia as pessoas certas, isso era mesmo algo garantido. E sentiu então um contentamento quase feroz. Ela não precisava de nenhum desejo, nenhuma opção. Já possuía uma carreira, bastava escolher o convite a aceitar... A consubstanciação do seu ser mesmo, a inteireza do que ela era, a redondeza da sua verdade, tudo a fazia forte e lúcida, havia guardado a noite e agora poderia ser ela mesma a luz da manhã.

Levantou-se e caminhou ao lado do poeta, ao encontro dos amigos na lanchonete. O apetite pulsava nela, como se precisasse devorar tudo o que havia ficado para trás.













...



Domingo. O cheiro do hospital é algo tão característico que Maria Rita pensa que jamais poderá esquecê-lo.

Dia de visitas. Lá estava ela, novamente, subindo as escadas, passo a passo, degrau por degrau, porque as filas do elevador são homéricas, atingem desde o pátio do estacionamento à entrada do hospital.

Maria Rita pensa nos parentes dos internos que estão nos leitos dos andares mais altos, cheia de compaixão. O horário já curto das visitas, devorado pelas filas, permitiria aos doentes talvez apenas um vislumbre daqueles que lhes restituiriam algo dos seus próprios seres. Porque a ela parecia que os internos do hospital deveriam dar-se a si mesmos como um puro núcleo sensciente despojado do próprio eu, aqueles doentes, lançados no espaço-tempo eterno, fluente, vazio.

Mas quanto ao pai de Maria Rita, estava na enfermaria do terceiro andar e ela rapidamente se viu diante dele, sentindo aquela mesma angústia...

O pai estava morrendo.

Ela o cumprimentou sabendo que ele não responderia.

Há semanas seu pai estava naquele estado, paralisado, mudo, macérrimo. E ninguém sabia explicar convenientemente por quê. Deveria ser a esclerose, ela supunha, e falava com ele sem saber se ele a ouvia.

_Pai, agora quem vem às visitas é a mamãe, viu? É que eu estou indo para São José dos Campos...

Perscrutou-lhe a expressão cuidadosamente. Os músculos da face, imóveis, não impediam que ele a encarasse como se de fato acompanhasse o que ela dizia. Mas Maria Rita não sabia se ele a compreendia deveras ou como ele julgava o conteúdo daquela informação. Ela silenciou.

Contentou-se por um momento em arrumar-lhe as cobertas sobre o corpo pequeno, inerte.

Olhou à volta enquanto os outros pacientes viam seus leitos rodearem-se por visitantes. Grupos de religiosas entravam na enfermaria, distribuindo folhetos e detendo-se à beira dos raros leitos sem visitas, buscando convencer os solitários a aquiescer à sua crença.

Talvez a maioria dos ocupantes daquela enfermaria chegaria a receber alta, voltaria a suas casas, quem sabe nem mesmo lembraria muito do hospital, e quando o fizesse seria com o alívio de um liberto. Mas seu pai...

Ela voltou o olhar ao enfermo idoso, enrugado, parecendo ainda mais velho pelo estado de extrema fraqueza no qual se encontrava. Não havia muitas chances, ela pensava. Com efeito, era a última vez que o via.

Mas ela não sabia disso. Sim, poderia admiti-lo, mas a título de uma possibilidade.

Maria Rita estava grávida. A mãe de Carlos possuía alguns parente no interior e com as economias que ele havia reunido, frente à contingência, estava se associando à pequena mercearia do tio em São José dos Campos. E deste modo, naquela visita de domingo, Maria Rita despedia-se do pai.

Porém, ela pensava, havia também a possibilidade, uma talvez entre mil, e ainda assim uma possibilidade, dele vir a se recuperar, a receber alta:

_Mas não se preocupe, a mamãe e o Tôni virão visitá-lo, e o mais importante é que quando o senhor melhorar virá morar comigo em São José...

Já havia combinado isto com Carlos. Mas será que o pai entendera? Ela sentia-se comovida.

_Amanhã nós vamos, a viagem já está marcada, e quando você for vai adorar o lugar porque a cidadezinha é linda...

Então Maria Rita julgou ver algo como pura incredulidade no modo pelo qual o pai a encarava agora.

Ela jamais pode esquecer aquele momento, tampouco.

O modo como ele pareceu zombar da oferta dela, o modo exato pelo qual sua expressão, todavia imóvel, pareceu querer dizer “Que nada... Eu vou ficar aqui...”

E muito tempo depois, seu filho já crescendo, em São José dos Campos, Carlos à frente do seu pequenino negócio, às vezes, à tarde, naquelas tardes preguiçosas das cidades do interior, ela se quedava, pensativa, com aquela expressão do pai na memória, a última expressão dele que lhe pertencera, duvidosa, quase jocosa, a zombar dela, “que nada... Eu vou ficar aqui...”

A visita terminava.

Ela encaminhou-se à saída do hospital tendo beijado a face amada e tênue do velho pai.

Contrariava-a muito a idéia de deixá-lo ali, tanto mais que não tinha certeza quanto à assiduidade das visitas da mãe ou de Toni. A barriga ainda não a incomodava muito mas ela desenvolvera uma aguda noção da existência do filho em seu ventre a qual por algum motivo ganhava maior relevo quando ela estava caminhando.

Lágrimas teimavam em assomar-lhe à face. Carlos a esperava no portão pois ela havia querido conversar com o pai a sós. Ele a amparou gentilmente. De repente ela encarou o rapaz, séria, com um olhar fixo. Pareceu naquele instante jamais tê-lo visto antes.

_O que foi, Maria Rita? Está se sentindo bem? Como está o seu pai?
Ele a atendeu, solícito, procurando abraçá-la, preocupado com o estado dela, sem saber se as notícias eram boas.

No entanto o que Maria Rita experimentava era um estado de alma sui generis pois sem aviso uma sensação totalmente desconhecida de ser alguém outro, de nada ter a ver com o próprio ser, este que nunca fora e que era, porém, agora. E ele... Ele fazia parte daquele mesmo agora imparticipado, desconhecido. Maria Rita se perguntou gravemente se o amava, se tudo aquilo não era o falso rumor de uma cena hipotética, um engano...

_ Maria Rita, o que houve, Maria Rita...

Carolos a interpelavaa, incisivo. Tão repentinamente como viera a sensação estranha a abandonou. Tudo voltava ao normal, oh! Sim, ela o amava, sim...

-Tudo bem, Carlos, o ambiente estava um pouco abafado.

_Tem certeza? Você está legal?

_Sim... Sim...

Mas algo daquilo persistia como a impressão remanescente de uma percepção inusual.

_Eu quero falar com a Desireé. Você tem um cartão?

Urgia a necessidade de reconectar-se. Desireé fazia parte de sua vida una, anterior a Carlos, a vida do colégio, das festas, dos amigos, de tudo que ficaria também, ali, enquanto amanhã ela seria outra com ele, como agora, com ele, em outro lugar, sim, sim, mas agora ela precisava desesperadamente ser um pouco outra vez ela mesma, ali no portão do hospital onde lhe viera instintivamente a certeza de que não mais veria o pai.

Mas Carlos não recebera bem o seu pedido. Puseram-se a andar na direção de um telefone público.

Ele lhe fornecera o cartão e ela pode perceber-lhe a fisionomia rústica, dura, enquanto Maria Rita, tremendo, discava o número de Desireé, notando a exata proporção de incompreensão, de simplicidade incurável na alma daquele homem que seria o pai do seu filho.

_Desireé não está. – Explicou ela, desligando o telefone. Ele pousou o braço ao redor dos seus ombros com gestos possessivos. Ela deixou-se levar, como se então aceitasse o seu destino.







...



O sol brilhante do entardecer traceja linhas ofuscantes no alumínio da janela.

Marlene assiste a TV, sentada no sofá da sala.

A tela parece borrada pela luz e as imagens desvanecem devido à claridade excessiva despejando-se, crua. Marlene se põe de pé em um gesto habitual.

Está acostumada a isso, ter que fechar as cortinas à tarde por causa do sol, aos domingos, quando geralmente não há mais nada a fazer e ela só tem à sua frente o aparelho de Tv. Então costuma preparar algo apetitoso para consolar-se, assim hoje, o doce de chocolate.

Ao voltar ao sofá, à Tv, ao doce, porém, suspira de um modo inusual.

Porque tudo isso da sua rotina solitária de domingo, o marido com o filho no clube ou na praia ou então com os amigos, o filho com sua turminha no play ground do edifício, Ana com alguma amiga, o namorado ou apenas no quarto estudando para provas, tudo isto tem algo que é seu, é sua própria existência e é descansado, calmo, quieto, silencioso, confortável.

No entanto hoje suspira, algo inquieta. Apenas algo inquieta, é verdade, surpreendentemente não totalmente desesperada. Isso, não totalmente.

Olha à sua volta, por um momento a atenção tendo espontaneamente se soltado da tela da Tv.

É difícil crer, agora que todas as coisas estão repousadas no domingo à tarde, como que adormecidas pela luz intermitente do aparelho tornada gradualmente mais vívida pela penumbra crescente das cortinas fechadas, do avanço das horas precipitando-se rumo à escuridão da noite. É difícil crer que tudo isso amanhã deixará de estar, será transformado, removido, não mais será, nunca... nunca...

Seus olhos estão novamente imantados pelo jogo colorido das imagens. Como que em um plano oculto seus pensamentos retrocedem.

Aquilo também havia se incorporado à antiga rotina do domingo e da televisão, desde que ocorrera há dois meses, sempre, àquela mesma hora sua mente reprojetava, em surdina por sob as cenas, tudo novamente daquele dia, há dois meses... quando ele estivera ali...

Ana lhe havia transmitido a conversa com o pai, no restaurante, na sexta-feira e ele não viera. Sábado fora um dia vazio, atordoante. Ela não sabia o que fazer, que providência tomar. De repente pensou selvagemente que era preciso recuperar o marido, passando a se arrumar freneticamente com ceras, cremes, tinturas de cabelo, atônita, patética, assombrada pela compulsão de se embelezar e o medo dele chegar antes que ela estivesse livre dos cosméticos que a recobriam quase que por inteiro.

Mas ele não voltou no sábado, tampouco. Logo, à noite, após horas de tensão, esperando, ela compreendeu ou foi atingida, atravessada diretamente por uma idéia clara como a verdade: ele não voltaria –jamais. E ela chorou aquela noite como nunca havia feito antes em sua vida.

Quando acordou então naquele domingo, domingo exatamente como hoje, e se viu no espelho, as marcas do pranto tendo anulado horas de cuidados diligentes com sua aparência, o estado apático em que se encontrava de algum modo tornou tudo aquilo sem importância.

Nada mais tinha importância e no entanto havia seus filhos, haveria o sítio conforme Ana lhe contara... A mulher que acordou domingo não parecia a mesma que se engolfara naquele pranto triste, no sábado, mas era ela própria só que com uma decisão nova. Não mais recuperá-lo mas recuperar-se. E então sem que ela esperasse, no domingo à tarde, há dois meses, exatamente domingo como hoje e à tarde, como agora, ele chegou.

Naturalmente a Tv estava também ali à sua frente e o apresentador era o mesmo.

Por um instante ela não pensou que tudo aquilo era tão insólito, ele chegar, assim, depois daquele sábado, simplesmente ele, ali.

Por um instante, naquela tarde, há dois meses, tudo lhe pareceu do mesmo jeito que sempre fora, ela vendo Tv, sabendo que de qualquer modo em qualquer momento ele haveria de chegar, do futebol, da praia, com Sérgio ou sozinho...

Agora o apresentador entrevista um casal de atores em lua-de-mel. O close focaliza o sorriso da mulher. Ela se deixa hipnotizar – e há dois meses, ao mesmo tempo relembrando, ele chega, na sala.

Logo olhou para o marido e percebeu-lhe os trajes. Uma blusa que ela nunca havia visto antes, uma calça desconhecida. O próprio homem era-lhe alguém novo, como se não fosse ele, o homem com quem havia se casado.

Enquanto o casal se beija na Tv ela recorda que ele encaminhou-se à cozinha adentrando casual pelo corredor, sem dizer nada. Agora ela estava totalmente dentro da situação toda e experimentou aquele costumeiro não saber se devia segui-lo quando ele se afastava e o subseqüente langor que lhe fazia deixar-se estar quieta onde estava, mas agora era outra coisa – ela levantou com certo ímpeto.

Na cozinha ele bebia um copo d’água. O copo estava suado, ela reparou naquilo, sem saber porque. Tudo estava quieto no apartamento, calmo, as paredes lavadas com os azulejos claros, os armários cuidadosamente arrumados e limpos.

A lâmpada fosforecente ligada fez com que ela se apercebesse da aproximação da noite. Queria que ele falasse primeiro.Não havia nada em sua mente – nada.

De repente o viu sentar à mesa e seus gestos denotavam um cansaço fora do comum. Ele olhou-a diretamente, parada no umbral. Marlene sentiu que seus pés se moviam na direção dele. Sentou-se à sua frente.

_Cadê os meninos. Onde está o Sérgio, a Ana?

A pergunta parecia tão banal... E um mundo escondia-se por trás da significação das palavras, toda uma vida juntos...

_Ana está com o namorado, Sérgio está brincando no “play”.

O silêncio habitual do seu estar junto cresceu novamente. Fernando encarava agora o peso da perspectiva das coisas vistas pelo ângulo da mulher e era difícil enfrentá-la.

A verdade é que havia literalmente fugido àquele confronto.

Na sexta-feira anterior, após conversar com Ana, seu plano inicial era voltar ao apartamento mais tarde e conversar também com Marlene, de uma forma adulta, consciente. Procuraria tranqüilizá-la ao máximo quanto ao futuro, fazê-la ver as possibilidades ilimitadas que se estendiam à sua frente.

Mas algo na lembrança dela tornara-se comovente.

Era como um argumento irretorquível, mais enfático por não estar sendo expresso e ele sabia que uma conversa franca poderia solver aquela impressão puramente emotiva mas a visão do seu simples olhar mudo o destituía de coragem e ele não poderia prosseguir.

Assim não voltou aquela sexta e durante o sábado procurou não pensar naquilo deixando-se abandonar nos braços protetores de Sônia. Mas ele era um caos flutuante. Ele não poderia tomar qualquer decisão. No entanto Sônia não demandava soluções, apenas estava ali e seu sorriso, sua ternura, devolviam-lhe a mera capacidade de viver.

Logo, no domingo, superados os conflitos interiores, resolveu que qualquer protelação era um erro e novamente ele tinha tudo sob controle – mas agora, frente à frente, o olhar de Marlene não parecia comovente e sim... existente, e isso o desconcertava.

A existência dela implicava uma perspectiva, o que era mais que um simples argumento. Ele podia se ver outro através daquela perspectiva outra – e não era bonito. Sentindo-se um estranho ao perguntar pelos próprios filhos... incapaz de quebrar o silêncio à frente da inquebrantável coerência ali da presença dela...

_Fernando...

A voz de Marlene soou-lhe aos ouvidos paradoxalmente como uma súplica dele mesmo apelando para algo – sombrio? Desconhecido? Abandonado? Dentro... Dentro do ser anônimo que era ele, ouvindo-se a si mesmo pronunciado na forma alheia de um nome.

No entanto Marlene havia mergulhado em uma disposição singular do seu espírito comumente avesso a assumir iniciativas quando se tratava do marido, de quem ela sempre esperava a ordem, diante de quem ela fora verdadeiramente condicionada pela educação – e pelo exemplo da mãe, das mulheres do seu meio, da natureza particular da sua visão da vida – a deixar-se guiar preferencialmente a apresentar um modo ou argumentar a favor de uma idéia.

Tudo estava subvertido porém, desde que ele aparecera subitamente no domingo, com roupas desconhecidas, ele mesmo um homem incógnito e Marlene viera por si mesma à cozinha.

Havia sim, o que dizer.

Ela havia prometido a Ana interceder pela liberdade da filha.

E ainda que a escolha das palavras lhe parecesse uma arte oculta, ainda assim ela o enfrentaria, agora, não por seu próprio ser, por seu repúdio, por seu engano, pelo abandono, mas pelo direito de Ana – e também porque nada havia mais que obstaculizasse aquele tão natural movimento da alma que consistia em contestar o que não lhe parecia correto.

Mas a Fernando urgia desfazer-se daquele estranhamento, daquela visão especular que o forçava a refletir a própria incerteza do seu ser humano face ao limite. Ele irrompeu então, por sobre o silêncio, o chamado dela, a armadilha na voz da mulher.

_Falou com a Ana? – ele perguntou abrupto, sem se importar com o que fosse que ela estava para dizer.

Marlene reconheceu-lhe de imediato a atitude, tão própria dele, tão repetida por todos aqueles anos de casados. Fernando simplesmente invertia as coisas, tomava a contrário a natureza dos fenômenos de modo que aquilo a que ele a constrangia ou forçava a vivenciar tornava-se uma ação sua, uma realização total da própria Marlene. Assim como agora, ele não perguntava se Ana viera falar com ela – o que realmente ocorrera, e a única coisa que poderia realmente ter ocorrido uma vez que a conversa decisiva no restaurante havia tido lugar exclusivamente entre pai e filha sem que ela de nada houvesse participado.

E no entanto ele, com toda segurança de quem detém as chaves da coerência, indagava se ela havia falado com Ana...

Mas como sempre, mesmo armada com uma disposição de espírito tão alterada pelas circunstâncias, ela não foi capaz de cortar-lhe a ação inversora.

_Sim. Falei com ela.

Respondeu, logo sentindo uma responsabilidade estranha pousar-lhe aos ombros, como se ela fosse a causadora de tudo, como se dela houvesse partido todas as decisões, como se ela mesma – Marlene- fosse a pessoa que solicitava o divórcio.

A impressão era tão forte quanto absurda e ela, que no entanto conhecia bem aquele resultado contraditório mesmo sem jamais ter logrado acostumar-se a ele ou contornar seus efeitos, sentiu-se dominar por uma onda de nervosismo culpado que lhe abalava as defesas, que lhe subvertia as razões tão bem assentadas em seu espírito como conhecimento certo da natureza dos eventos.

O ambiente parecia responsabilizá-la.

Fernando, em contraste, recuperava-se. Parecia tão sereno e seguro de si mesmo agora, apenas esperando que ela respondesse, que se justificasse. E como ela apenas reconhecesse que sim, como se assumisse toda a culpa, que falara com Ana, isso o emancipava, o dotava com novos poderes – pura e simplesmente.

Era como um jogo entre ambos e ele ganhava sempre.

Marlene estava à beira das lágrimas.

Mas se tudo havia mudado, se as roupas dele eram-lhe tão estranhas, se ela não sabia de onde ele estava vindo, sobrava espaço ao menos para não se deixar desmoronar em meio às lágrimas, sordidamente, diante dele.

Marlene levantou do lugar no qual estivera sentada, buscando ela também um copo d’água, suspirando profundamente, procurando aproveitar cada segundo daquele intervalo que ela fora capaz de conseguir. Então percebeu que não tinha, aquilo também, importância.

A responsabilidade, naquele caso, era uma coisa que não mais existia.

Só a decisão valeria e era por isso que ela deveria lutar. Voltou a sentar-se em frente a ele. Pois de um modo ou de outro, se ela não se importasse com a inversão sutil, o caminho estaria livre – ele mesmo o desobstruíra para ela.

Animada com a nova capacidade de avaliação – um tanto apressadamente, como alguém que derruba de propósito um item que casualmente havia ficado erguido em meio ao caos dos escombros de um desmoronamento – ela prosseguiu:

_Sim, isso mesmo, Fernando. Eu falei com a Ana e é sobre ela que eu quero conversar com você.

Ele pareceu-lhe contrariado, mas como se a própria aparência fosse um efeito estudado no meio da manipulação do jogo dele.

_Ela vai aceitar, Marlene, já aceitou. O Sérgio vai ser mais complicado de entender por causa da idade, mas também por isso mesmo, se a gente mostrar para ele que nós dois estamos bem resolvidos, que é isso mesmo que a gente quer, então...

Fernando propositalmente deixou a frase incompleta, mas o sentido era claro. Novamente ele conduzia a conversa na direção do fundamento tacitamente estabelecido conforme o qual a decisão – a responsabilidade- cabia aos dois o que queria dizer – a ela, e Marlene sentia aquilo como sendo algo totalmente falso, um corolário da covardia dele. Novamente ele era bem sucedido nisso já que por algum motivo oculto em sua personalidade era-lhe impossível romper o acordo tacitamente imposto por ele, denunciando-lhe a desfaçatez, mas agora aquele jogo só poderia ir até certo ponto.

Porque ela ou os interesses dela não eram absolutamente o cerne da intenção que a animava ele não poderia deixar de enfrentar aquela outra verdade – a que tocava o direito da própria filha.

_Não é isso, Fernando...



VII-



   
Ela recordava tudo, ali em frente à Tv.

Agora as luzes coloridas eram totalmente vívidas e presentes porque a noite havia chegado. O programa mudou para um teatro de variedades. Mas naquela conversa com Fernando, há dois meses, ela podia lembrar como naquele instante também ela havia sentido a onipresença da noite pela vividez maior da luz fluorescente na cozinha, assim projetada em sua percepção devido à escuridão noturna circundando-os enquanto ela anunciava, simplesmente.

_O problema é que você não tem o direito de determinar o caminho da Ana, profissionalmente, existencialmente...

Então algo assomou na expressão dele, algo não esperado.

Porque ela contava surpreendê-lo e preparara-se para a sua cólera, ou a sua surpresa, habilmente buscando calar o que dentro dela protestava por ser aquilo mesmo que sempre fora ou supunha ter sido, a suposição tendo fundado a base da sua vida ou rotina.

Mas ele vinha de toda uma outra expectativa e ela não podia prever que o que soava para si mesma como um grito de independência – e de alarme – era para ele apenas uma coisa quase que sem importância.

O fato é que Fernando preparara-se, ele também, para o protesto dela. Contava com isso até, porque assim poderia dar vazão à sua magnanimidade, contornar a simetria da sua auto-imagem espelhada na perspectiva da mulher a partir da sua boa vontade em mostrar-lhe o caminho da liberdade, levando-a a participar do sabor incrível da vida nova, da possibilidade daquilo que era como um renascer espiritualmente em seu próprio ser lançado –fora com tudo que constituísse uma falsa concepção da sua pessoa, como a rotina vazia.

Queria dar isso a ela, a oportunidade de ver, de reencontrar-se, de chegar à delícia que ele mesmo estava vivenciando. O que seria para ela, um novo amor, a descoberta de uma aptidão, isso ele não sabia, eles ainda não sabiam, mas se Marlene apenas se colocasse na perspectiva certa, então algo viria, Fernando tinha certeza disso e queria transmitir-lhe esta segurança, esta confiança...

Pensava então que ela viria cobrar-lhe o abandono frente a quê ele iria fazê-la compreender que estava lhe concedendo um meio para que ela mesma – ela também – se libertasse da concepção ilusória sobre o relacionamento em que viviam pois ele não mais a amava e ela estava tão identificada com o que ele considerava o automatismo da rotina impessoal que nem poderia afiançar algo verdadeiro sobre os seus próprios sentimentos. No entanto era isto – seus próprios, genuínos, verdadeiros, inalienáveis sentimentos, que lhe estavam sendo devolvidos – por ele!

Mas tudo com que Marlene se importava era com Ana... E nem mesmo com Ana, ele suspeitava. Porque aquilo não passava talvez de um subterfúgio e mais uma vez ela estava se anulando na rotina – mãe, esposa, dona de casa – ao invés de dar voz ao que lhe ia realmente “por dentro”- ela deveria sentir alguma coisa, ainda que fosse a revolta, e externalizar isso! Olhou-a então com decepção e neutralidade, como faria a um cliente no escritório.

_A Ana? Ora, a Ana tem que assumir o que é dela, de vocês... – Passando a exibir-lhe toda uma argumentação orçamentária.

Marlene encarou o rosto dele, então, como se nunca o houvesse visto antes...

A impressão parecia-lhe ainda mais pungente devido ao efeito da luz sobre a sua sensibilidade tão exacerbada... Dinheiro! A questão dele era essa, Dinheiro, dever, fazer-se de bonzinho – não é que ele “quisesse” mas sim que ele “não possuía meios” de evitar forçar a filha a largar os estudos, a engajar-se em uma empresa que não tinha nada a ver consigo. E então se perguntou novamente se aquele era mesmo o homem com quem havia se casado.

Oh! Sim, Lembrava dele. Do jovem idealista e totalmente dedicado a uma causa. Do seu zelo pela “arquitetura para o povo”. “Nada de conjuntos habitacionais inabitáveis, vamos criar qualidade e conforto a preços populares! É possível! É necessário!” Do seu ardor, da sua paixão. E agora o via indiferente frente à felicidade dela, da mulher que havia lhe dado dois filhos, destes filhos... Ana, administradora da empresa do avô. Sérgio, estudando no grupo escolar de uma cidadezinha do interior.

Será que ele não via a realidade do que estava fazendo?

Mas e ela? Casara com ele, alguma vez? Ele a havia amado, alguma vez?

Anos de espera passaram por sua mente naquele momento, há dois meses, assombrando-a, como agora.

Era como ir de encontro a uma sensação sem qualidade, sabor, modo, nada. Parecia impossível de ser nomeado e no entanto era tão claro, manifesto, na verdade implícito, impresso no corpo, na memória, no tempo. Anos de espera...

Por que, pelo quê?

Anos de sussurros abafados, olhares dissimulados, uma vida de papéis trocados – aquiescer, obedecer, acomodar – e tudo não era verdade! Ela mesma, não. Ela mesma era um sonho, um comodismo. Um esquema, uma fórmula viva em seus gestos, resolvida sempre na expectativa dele. Deles. Um plural impessoal que abrangia pais simbólicos, o falo, o Édipo e as castrações, os domingos inúteis em frente a Tv com suas mulheres constitutivas, os chás beneficentes da sua mãe, as roupas que usava quando criança, as proibições: não sujar-se durante as brincadeiras, não brincar na rua, não falar com estranhos, não fazer sexo antes do casamento, não recusar o seu marido, não falar demasiadamente, não gritar, não prestar falso testemunho, não matar, não roubar, não destituir o seu próximo, não espionar a carteira do esposo, não olhar pelas frestas das portas... Não... Não... E agora que o sistema estava falido?

E agora que ele não vigorava mais? Como ser? Quem ser? O que é o ser?

Mas naquele outro domingo também a idéia de que ele deveria ter pensado nela – o adulto, a mãe responsável- como a pessoa mais certa para assumir a empresa ao invés de Ana lhe viera como um resultado determinado pela margem do que havia sido posto em jogo...Era óbvio, tinha estado ali o tempo todo mas ela havia apenas aceito a verdade dele, pensado através dele, sem questionar a base do que lhe era imposto como suas idéias.

Suas idéias... O quanto isso era manipulado, falso, um efeito – mais um efeito- do sistema “dele” sobre o ser que era ela...

Saber-se tão insubstancial, um reflexo cujo determinante era o homem veio ao encontro da imagem que ela mesma havia projetado de si mesma, o passivo, o modelável... Parecia-lhe um círculo vicioso, uma visão em abismo...

_ Mas Fernando – ela insistia, buscando obstinadamente recuperar o terreno que havia conquistado a partir do momento em que se decidira a ousar argumentar com ele:
_A Ana, a pessoa dela tem que ser mais importante do que simplesmente a sua conveniência orçamentária. Ela é sua filha!

Ele retribuiu o seu apelo com um olhar que apenas queria dizer “Não há outro meio.”

O fato de que Ana agora estava treinada para assumir o cargo –agora que as coisas haviam chegado ao seu termo e ele viera tão somente para conversar com ela e levar alguns objetos pessoas, “O resto das minhas coisas deixa por conta da empresa de mudanças”- tornara-se o argumento decisivo dele, aquela noite. E para Fernando aquela discussão mesma era assim como a própria Marlene havia se tornado, sem importância, não-essencial, supérflua e repetitiva.

Se ela ainda falasse de si mesma, de como estava se sentindo... Ah! ele teria tanto a lhe dizer... Então ela o viu levantar-se e ir... Para ela aquilo era assim o que realmente era ir. Para nunca mais voltar. E Marlene havia ficado. Na cadeira, na cozinha. Com as instruções sobre a mudança para dali há dois meses quando Ana deveria já ter feito as provas e se formado em contabilidade técnica. Com as costas da mão dobradas, segurando o próprio queixo. Com o olhar perdido no recém-descoberto vazio de si mesma...

De repente voltou ao seu presente, aparentemente inócuo. Só aparentemente porque amanhã, segunda-feira, a empresa de mudanças viria finalmente revolucionar todos os itens que haviam formado a insignificância misteriosa do seu mecanicismo assim disposto como tal ou “casamento’ – o telefone estava tocando.

Não havia nenhuma expectativa em sua voz. Se havia uma certeza em seu mundo era de que não se tratava de Fernando por todo e qualquer telefonema naquele apartamento.

_Alô? A Ana está?

_Um momento.

Era Fátima. Ana estava no quarto arrumando algumas coisas que resolvera não deixar por conta da empresa de mudanças. Marlene anunciou-lhe a chamada. Ela atendeu na extensão enquanto Marlene voltava à sala e à Tv.

_Alô?

_Alô, Ana, é a Fátima.

_Oi, Fat, e aí?

A amiga estava preocupada, querendo saber como Ana estava dando conta daquilo tudo, a mudança, a perspectiva do sítio, Joseph...

_Estou ligando para saber como é que você está.

Ana compreendeu-lhe de imediato a intenção.

_Ah! Fátima, está sendo uma barra, sabe, às vezes penso que não vou agüentar...

_Coragem, menina. Você não pode se entregar agora. Tem que enfrentar as coisas como elas são.

_Eu sei.

_Pois é. E depois, pelo que você me disse, é só por um tempo, não é mesmo?

Fátima referia-se agora a algo que Ana lhe havia contado antes, sobre sua mãe.

Efetivamente Marlene resolvera, a sós com a filha, que uma vez que Fernando estivesse em Nova York elas não precisariam necessariamente se ater às prescrições dele. Assim ela mesma, Marlene, uma vez a família já instalada no sítio, iria trabalhar junto a Ana, e quando se encontrasse completamente ao par do manejo dos negócios, Ana poderia ser liberada para retornar aos estudos. Com a lucratividade esperada, ela poderia voltar a morar na cidade, conforme o curso que desejava fazer.

_É, isso mesmo, Faty, só por um tempo...

Ana conscientemente evitava agora as implicações disto na conversa .

Não que desconfiasse da amiga mas pelo que sabia ter se passado entre ela e Joseph antes sobrava-lhe algum constrangimento em partilhar detalhes do namoro. No entanto Fátima estava inocente no caso pois se havia “ficado” com ele alguma vez sinceramente via agora Joseph apenas como o namorado de Ana.

_E você, Faty, vai ficar legal?- Ana perguntou em seguida, desviando a indagação que Fátima poderia fazer a respeito de como estariam as coisas entre ela e Joseph frente à circunstância da mudança iminente.

Refletindo então que a amiga possivelmente não queria prosseguir naquele assunto ela resolveu falar sobre si mesma.

_Eu? Eu estou legal, sim. Fiz a matrícula na Educação Física... O Samuca, o Samuel, lembra dele? Pois é, esteve aqui no prédio ontem, a gente conversou... Foi bem maneiro, sabe? Mas, pô, eu vou sentir a tua falta.Vou ligar pro sítio toda hora. Quando der a gente se encontra, você vem aqui, eu vou lá... – Elas riram da intenção jocosa das palavras de Fátima.

_Claro, isso já está combinado. Mas e “elas”? Continuam na mesma? – Ana fazia menção à mãe e à irmã de Fátima, que não haviam aceito bem a sua opção por Educação Física.

_Na mesma! Me consideram o cavalariço da estrebaria só por que não tenho nada a ver com livro! – Com a comparação cômica Fátima tentava demonstrar que não se importava com o preconceito intelectual, mas na verdade ela só superaria totalmente aquela sensação de ser menosprezada com o desempenho profissional efetivo, no qual ela viria a ter bastante êxito.

Logo, deixando mais uma vez marcado o compromisso de se comunicarem, tão logo Ana chegasse ao sítio no dia seguinte, se despediram.

Ana pousou o fone, olhando à sua volta como que para ver se estava tudo arrumado.

Algumas bolsas abrigavam papéis, livros e objetos de uso pessoal que ela levaria no porta-malas do automóvel. Ela deixou-se estar por um instante absorta na contemplação do quarto ao mesmo tempo tão íntimo e tão alheio às circunstâncias que o fariam outro – não mais o “seu” quarto, mas um aposento anônimo, devolvido ao proprietário e repassado – para quem?

Voltou-se então abrindo a porta do armário à procura da própria imagem no espelho.

Havia se decidido a não acumular pensamentos inúteis sobre as coisas que se vão. Estava resolvida a encarar tudo de frente, a assumir as próprias circunstâncias, a provar o seu valor justamente assim – face às adversidades.

Considerando-se arrumada, saiu do quarto, pousou um beijo no rosto da mãe sentada na sala às voltas com a Tv e um prato de macarronada “ao sugho”.

Saiu. Eram sete horas e lá fora, na orla da noite perfumada e mágica – a noite mística- Joseph a esperava.





















...



Márcia entrou na sala.

Os pais, juntamente com Xana, assistiam o programa de variedades na Tv. Ela disse apenas um “Oi”, em geral, como que para todo mundo. O pai respondeu o seu “Olá, Senhorita Márcia”, brincalhão e habitual. A mãe sorriu-lhe.

Xana porém, olhou-a com aquele jeito de gata, provocante, zombeteiro. Ela não pode deixar de prender-se um instante à expressão da irmã.

Uma espécie de jogo havia se dado entre elas e Xana vencera, sabia disso e o estava saboreando agora. Mesmo assim a atenção de Márcia se repartiu, acompanhando todos os lances do que a expressão de Xana lhe passava e ao mesmo tempo observando os pais que, silenciosos, constatavam que algo ocorria entre as filhas naquele momento fugidio.

A despeito de tudo Márcia não deixou de experimentar o prazer que sempre sentia ao contemplar os pais juntos. Havia neles uma cumplicidade indestrutível e serena que fazia com que as pessoas à volta se sentissem bem pelo mero partilhar daquilo – o que quer que fosse que havia indubitavelmente ali entre eles- e que era tão bom. Logo porém deixou-os os três na penumbra da sala, encaminhando-se ao seu quarto no andar superior.

A suíte, que dividia com Xana, espaçosa e confortável mas com aspecto de certo modo simples, pareceu fresca e tranqüila ao ser iluminada pela luz da lâmpada. Ela sentiu-se aliviada por estar ali.

Com gestos indolentes remexeu o armário à cata de uma muda de roupas confortáveis, após o quê, entregou-se ao mais básico dos seus prazeres, o banho.

Já refrescada, com os cabelos molhados que ela esfregava vigorosamente com a toalha, sentada em sua cama, sentiu que a solidão do quarto a amparava das sombras da noite exterior que a haviam ferido em alguma parte paradoxalmente intangível do ser. Francisco faltara ao encontro. Ela estivera lá, na praça, uma hora e meia, sozinha, esperando por ele, conforme o combinado, mas ele não aparecera.

Como o rapaz não possuísse um telefone ela não poderia ligar – já, agora, indagando não sobre o que ocorrera mas deles, do que seria deles!

E no entanto ela sabia – como é que sabia? – ela sabia que estava tudo acabado. Ele não a procuraria mais.

Deixou-se estar, recostada na parede contra a qual a cama se dispunha.

Respirava com exalações curtas, como que abafadas, atônita frente à constatação da verdade. Ela o queria tanto... Ela o amava... E ele não se importava. Ah! Sim, provavelmente poderiam vir a se encontrar casualmente. Ela até conhecia o endereço dele... Mas se ele não a queria... Não, Márcia via isso agora, ela nunca soubera, sempre havia sido assim, uma incerteza quanto ao que ele realmente sentia por ela. No entanto o namoro transcorrera e de qualquer modo era só o que ela desejava, era tudo com o que ela se contentava. E agora...

Ele jamais havia faltado a um encontro antes mas nem era por isso que estava certa do fim. Na verdade não sabia o por quê.

Uma aragem fria percorreu o seu corpo e seus pensamentos mudaram.

Sentiu a presença de Xana, como se a irmã estivesse mesmo ali.

Não queria ver Xana, agora. Percebeu que na verdade estava só, no quarto. Aquilo a acalmou por um breve momento. Logo depois inquietou-se com a possibilidade da outra entrar a qualquer instante, surpreendendo – a

Levantou-se precipitadamente. Deixou-se encaminhar quase que de modo automático. Depois estava, uma refugiada, na saleta do piano.

Naturalmente não era aquele o seu horário de exercícios – o som poderia sobrepor-se à Tv, na sala – mas não deixava de ser um costume seu refugiar-se junto ao instrumento quando desejava ficar a sós. O ambiente era calmo, atemporal. Márcia sentou-se ao sofanete onde algumas partituras casualmente dispostas serviriam à sua necessidade de uma ocupação íntima, leve, e ela se pôs a agrupá-las, arrumando-as metodicamente.

A dor de sua alma porém persistia. Revoltou-se consigo mesma. Por que não ir agora mesmo – e ela sabia muito bem que não iria nunca – à casa dele? Porque se entregar àquela voz irremediável que em seu peito lhe afirmava que não - que não adiantaria nada?

De repente levantou-se, sobressaltada. E se algo houvesse ocorrido com ele? E se estivesse doente? Márcia não sabia que na verdade Francisco havia escapado de uma verdadeira ameaça, aquela noite.

O fato é que o irmão de Márcia, inconformado com a sua ligação com Francisco devido a considerá-lo de uma classe inferior, “um malandro”, havia planejado algo sério que o afastasse da irmã de uma vez por todas. Iria asssustá-lo, francamente. Combinara com a sua gang: surrar e proibir expressamente o relacionamento com Márcia para não expor-se a algo pior.

Não sabia se Francisco estava assim tão interessado na moça para querer passar por cima de uma circunstância dessas mas apostava que não. E de qualquer modo aquilo iria pesar bastante contra.

Cumpriria a ameaça, caso fosse preciso.

Assim resolvido ele reuniu-se à gang e aproveitou a ocasião. Haveria um “pega” neste domingo, à noite, e era certo que Francisco não deixaria de estar lá. Todo mundo iria – os abastados como também os “bichos soltos”, conforme se autodenominavam, os “João Ninguém” , como eram chamados pelos outros.

Este tipo de atitude não era incomum. O irmão de Márcia, ainda em uma época anterior, quando todos eram meninos “botando as espinhas na cara”, costumava mesmo reunir os amigos para emboscar “Joões- Ninguém” desavisados que estivessem sozinhos à noite e até guerrear grupos deles, quando o divertimento ia mais para o lado de uma “batalha campal”.

Eram um constante perigo para mendigos e população de rua, pois costumavam atordoar os adormecidos nas calçadas com pontapés e gritaria – algumas gangs destas não chegavam mesmo a incendiá-los? Outras vezes as vítimas eram as prostitutas e travestis que se ofereciam aos ocupantes de automóveis no centro da cidade. O irmão de Márcia e sua turminha deixavam que se aproximassem para então esborrifar-lhes suco de tomate, misturas de graxa e óleo, tinta ou o que fosse...Não eram poucos com efeito, os recursos de imaginação da gang quando se tratava de sair contra os indivíduos que lhes pareciam “por fora” – sempre os de classes inferiores – e que lhes despertavam um ódio instintivo, aparentemente inexplicável.

Mas, pensava ele enquanto esperava por Francisco àquela noite de domingo, na esquina, isso era coisa do passado. Não ficaria bem para ele e os seus rapazes, agora, todos já maiores de idade, universitários, quites com o serviço militar. Ainda bons para um “pega”, mas não mais para as coisas dos garotinhos. No entanto encaravam o ataque iminente como uma “missão”. E o caso é que Francisco jamais apareceu tampouco ali.

Algo havia ocorrido no sábado. Um amigo viera à casa de Francisco, com uma coisa realmente sensacional.

O colega havia conseguido uma porção inusitada de fumo! E estava ali, repartindo com ele! Mediante pagamento, é claro, que afortunadamente ele poderia efetivar, e ainda assim, uma generosidade, verdadeiramente uma generosidade...

Então a noite de sábado e o domingo todo se fusionaram em um mundo qualquer que ele havia acionado através da sua pura e complexa consciência, o seu desvario ins-ciente , como ele mesmo havia descoberto o termo para expressar o que era mais um transvario – enquanto a cidade se cobria de cartazes com palavrões e outras ofensas contra os usuários – ele não queria saber – e foi sair de casa novamente apenas na terça-feira.

Estava dentro do próprio ser e encontrara-se a si mesmo. Fim de papo. O resto era impróprio, totalmente impessoal, não lhe tinha – com- nada- a -ver .Inclusive Márcia no domingo às sete horas da noite. Inclusive o “pega” às dez e meia. Inclusive.

Ele já estava bem grandinho para pegas. E Márcia... Puxa! Márcia Nunca – Jamais _ Em _ Tempo _Algum iria entender nada. Nada, era isso aí.

Sempre remexendo em sua bolsa para ver se a grana ainda estava. Sempre olhando em volta para constatar se porventura o bicho-papão não tinha vindo.

E o jeito como o olhava, parecendo querer engoli-lo inteiro mas na hora “H” só indo até o pondo em que ele tocava seus seios : a partir daí – proibido, expressamente!

Em nome da Virgem Santíssima!

Tudo bem, tudo bem – agora ele ria dela, no quarto fechado, o rádio tocando uma música em volume total.

T-u-d-o-b-e-m. E o que é que ele tinha a ver com isso?

Nada, tampouco coisa alguma. Então para que ir, seja lá para o lugar que fosse? E ele havia passado de ano? N-ã-o. Todo mundo iria receber uma coisa escrita em um papel: di-plo-ma-do – mas ele não. Não! Ele teria que fazer todo o terceiro ano novamente.

Não tinha pai, desde os quatorze anos. Mas a mãe suspendera-lhe a palavra por uma semana em represália.

Ótimo. Melhor que ouvir-lhe as ladainhas. Ela pouco se importava na verdade. Queria é que se arrumasse na vida para deixá-la em paz. Vivia de manicurar as unhas dos outros, a coitada. Quase que ele esqueceu que estava comemorando, ao pensar na mãe. Mas estava. Estava! Repetira de ano! Viva!!! Não precisava mais ouvir Márcia queixando-se da sinusite! Viva!!! Viva!!! YU – HUHHH!

E Márcia sentia agora o ímpeto daquela preocupação com ele, que lhe viera sem aviso.

Em pé, na saleta do piano sentia o coração aos saltos. “Meu coração vai estalar” ela pensou e precipitou-se, apoiando-se sobre o piano. Deixou que a fronte nua encostasse à madeira do instrumento, acalmando-se.

Então de repente a sensação de alarma se desvaneceu. Não. Não havia com o que se preocupar. Algo em seu íntimo sabia... Sabia que ele estava bem.

Sentou-se à banqueta. Descobriu as teclas. Brancas e pretas, as teclas eternas do piano rebrilharam à sua frente, saudando-a, mudas. Tocou-as levemente, sem pressioná-las de modo a não despertar os sons, apenas para senti-las como se elas fossem parte dela mesma, as teclas que moravam em sua alma, que ali haviam se estabelecido pouco a pouco por todos aqueles anos de estudo. Tranpor-se-iam congeminadas às almas dos seus alunos. Não. Não havia passado na prova do vestibular de química.

E de repente a porta se abriu. Ela sentiu o ar da noite invadir o aposento e voltou-se em um ato reflexo.

À porta o irmão contemplava-a, de maneira inusual.

_Oi Marcio, tudo bem?

O irmão de Márcia havia esperado por Francisco. Logo, sabendo do encontro que deveria ter tido lugar entre ele e Márcia, pensou que só havia duas alternativas. Ou eles não haveriam de ter se desgrudado, o que era grave, ou então Francisco embarcara em algum lance, deixando Márcia e o pega e tudo o mais para lá, o que de certa forma era o melhor, não importando que lance poderia ter sido esse no que lhe dizia respeito, a ele – Marcio.

Assim viera ver se a irmã estava em casa. Estava. Positivo. E era só olhar para a carinha dela, os olhinhos tristes e o jeito de quem não comeu e não gostou para sacar que Francisco havia de lhe ter dado um fora. Perfeito. Sorriu para ela e fechou a porta.

Saiu novamente, a gang esperando-o no portão. Caminharam juntos ao local do “pega”. Como então tudo se resolvera sem que fosse preciso “meter a mão na massa”.

As pessoas já se aglomeravam, algumas ruas apenas distantes dali, o lugar estava feérico. Reunidos, os jovens ostentavam algo que era intensamente primitivo. Tribal.

Márcia, sentada ao piano o havia visto se afastar sorrindo para ela, fechando a porta. Voltou a imergir em seus próprios pensamentos. Não havia passado em química. Francisco não viera ao encontro.

Os dedos apenas em contato com as teclas, quase uma carícia.

Lecionaria o piano. Todos na família estavam felizes com ela pelas boas notas na prova do conservatório, pela conclusão do segundo grau. As lágrimas brotaram. Principiaram a rolar.

A porta abriu-se novamente. Márcia não queria olhar, não precisava ver. Era Xana. Ficou ali de pé, contemplando-a enquanto ela não se esforçava mais por esconder as lágrimas.

Xana deslizou em sua direção. Os cabelos brilhavam, faiscando à luz e ela ajoelhou-se junto ao corpo convulso sentado à banqueta do piano, buscando-lhe o olhar, murmurando palavras de carinho.

_Marcinha, querida, irmãzinha, não fica assim não, deixa isso para lá...

Ergueu-se e abraçou-lhe os ombros fazendo-a recostar a cabeça contra si mesma. Falou-lhe novamente quase que junto ao ouvido, inclinando-se suavemente:

_É assim mesmo, Marcinha, não chore... Não chore... É para o seu bem... Você vai ver...













...

O carro estacionado no Bosque dos Namorados ocultava o casal beijando-se apaixonadamente em seu interior. O Bosque dos Namorados... Assim Ana denominava aquele lugar tão belo, uma reserva florestal no coração da cidade, onde os jovens casais costumavam se refugiar, à noite.

Quantas vezes estivera ali, com Joseph... E no entanto hoje, nesse domingo, nessa noite, tudo era decisivo, imperioso.

Toda entregue aos jogos de carícias, Ana deixou que o tempo passasse. Mas agora, desprendendo-se daquele beijo que a arrebatava, olhou com discrição o relógio-pulseira. Dez horas. Mais meia hora e teria que voltar.

Recostou-se na porta do carro, olhando diretamente para ele, na semiescuridão da floresta. Joseph sorriu, benévolo.

Achava engraçado o jeito dela. Sabia que quando ela se recostava assim na porta do carro estava querendo falar qualquer coisa, em geral algum “papo sério” daqueles que ela costumava ter, ou as provas da escola, ou a mãe e o pai, a viagem, o sítio... Ele ouvia-lhe a voz, acompanhava tudo mas não ouvia nada, na verdade. Ele a amava. Sim, mas o que ele queria nela era o seu beijo, os seus olhos que se grudavam nele até se fecharem quando ele pousava os lábios sobre a sua boca e ela lhe correspondia com intensidade, com delicadeza, com uma paixão exatamente igual ...

No entanto quando ela principiava aqueles “papos” ele apenas deixava ser, sem verdadeiramente acompanhar. Ãs vezes entendia o que ela queria dizer. Ãs vezes o pensamento dele corria longe, solto... E voltava ao presente quando alguma inflexão da voz dela o alertava para a necessidade de responder como agora:

_Claro, é só por um tempo, como eu te falei, a minha mãe...

Ela estava reiterando o fato de que encontrara algum consolo na vicissitude da viagem, uma possibilidade de continuar os estudos e mesmo de voltar a morar na cidade... Aquilo não deixava de ser importante para ambos, ela não costumava falar unilateralmente, mas por algum motivo ele não era afeito a longos discursos e assim devaneava. Sem saber porque lembrou-se de Fátima. Sorriu intimamente, comparando-a com Ana.

Fátima, cuja conversa era ligeira, tocando de leve assuntos triviais, com suas gírias e imagens cômicas, sua despretensão, seu desprendimento. Ana sempre falava coisas cheias de conseqüências, sua locução era contínua, dependendo da atenção e demandando engajamento, respostas, soluções... Joseph se inclinou sobre ela e se colocou em posição de beijá-la. “Sua” Ana... Tão séria, preocupada, tão capaz, tão firme. Sua Ana - inquebrantável.

Em geral ela não gostava que ele interrompesse quando estava falando, para beijá-la, porque era como se Joseph não estivesse compartilhando a sua expectativa, correspondendo às suas colocações, mas hoje – hoje qualquer contato com ele era tudo o que ela queria. Então deixou-se levar naquele beijo, enquanto a coerência do que estava dizendo se perdia quase sem que ela se importasse, e quando ele a olhou, novamente, a expressão reemergiu apenas como o murmúrio irracional do seu afeto.

_Joseph... Joseph... Meu amor, você vai me ver no sítio? Vai me ligar? A gente vai se encontrar, continuar juntos, ainda?

Ele percebeu o quanto Ana precisava da sua resposta.

_É claro, Ana... Não fique assim, não se preocupe, não... A gente vai se ver.

_Mas Joseph – ela recuperava agora algum domínio sobre a emoção e pode então articular com mais clareza o que queria que ele entendesse, _Eu tenho medo. Lá é longe, a gente vai poder se ver como, só de vez em quando...?

_Aos sábados ou domingos, sempre que der, eu vou ao sítio, como a gente combinou. E a gente se fala também, por telefone. –Ele asseverou. Mas ela não estava tranqüila.

No entanto era preciso se controlar. O que ele poderia fazer? A viagem tornara-se inevitável. Não lhe cabia agora pressionar, à cata de decisões que não poderiam ser tomadas de qualquer forma naquele momento. Não conseguia deixar de pensar no que ele poderia sentir necessidade de buscar, enquanto ela estava longe... E secretamente desejava que de um modo louco ele quisesse se casar com ela naquele mesmo instante, indo com ela também para o sítio. Mas o bom senso lhe voltava, e em um esforço para recompor-se encarou-o. Nada havia mais tranqüilo, autoconfiante, imperturbável, do que o semblante dele. Ela se fez calar, expectante...

Logo o carro se pôs a avançar sobre a noite. O rádio tocava, baixinho, canções românticas, que falavam sobre o amor. Eles estavam calados e assim permaneceram até chegar à casa dela e o percurso à véspera da viagem pareceu a Ana como um sobrevôo por todo o céu brilhante, estrelado.

As arcadas, as pontes, as fachadas das casas, as ruas e os sinais, toda a cidade parecia inclinar-se enquanto passavam como se estivesse despedindo-se dela, a pura velocidade transformada em sentimentos, a fugacidade das coisas atingindo uma consciência de si mesma, irradiando-se no ardor daquela noite. Só as suas mãos entrelaçadas testemunhavam tudo, eles mesmos incluídos nelas como detalhes esquecidos.

Então Joseph estacionou o carro em frente ao edifício.

_Você vai ligar amanhã, quando chegar ao sítio, está bem? - Ele perguntou um tanto comovido agora com o rumo dos acontecimentos ou talvez influenciado pela intensidade dos sentimentos dela.

_Eu ligo assim que chegar.

Eles se beijaram. Ana se pôs em pé, empertigando-se com uma certa solenidade. Então ela o viu afastar-se. Ficou ali, a noite estrelada, as luzes de mercúrio, vendo-o afastar-se até que o carro dobrou a esquina. A rua não era movimentada e ela ficou repentinamente só. Olhou a rua, longamente. Ali crescera , ali – seu lar, desde a infância. Tanto tempo... Tantos anos... Mas ela era jovem e deveria haver ainda tanta coisa a enfrentar.. Virou-se então, transpôs a entrada do prédio e principiou a subir as escadas.

Bem devagar... Degrau por degrau...

...





















































































































          












 

               


























































































                 




<

<